terça-feira, 10 de março de 2015
CAMILO PESSANHA - CANÇÃO DA PARTIDA
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
Lançá-lo ao mar
Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
Lançai-o ao mar.
E hei de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
— A última, de antes do teu noivado.
A sete chaves — a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.
in: Camilo
Pessanha, Clepsidra, Lisboa,
Ática, 1992
sexta-feira, 6 de março de 2015
Sebastião da Gama - Raiz
Tanto dissemos tu e eu, tanta palavra!...
E os enganos, as lutas, as promessas...
Como tudo vai longe! Como tudo foi útil e preciso!
Olha, vem à janela... Lá em baixo no largo,
brincam, junto da fonte, os moços e as meninas.
Alegres todos, riem. Nem reparam
como é triste uma fonte que não corre.
O que hão-de eles saber ?! Têm cinco, seis anos...
Da janela
vemo-los bem. Vem à janela olhá-los,
felizes como nós...
Arrábida, Novembro de 51
in: Sebastião da Gama, Pelo Sonho É Que Vamos, Edições Arrábida
E os enganos, as lutas, as promessas...
Como tudo vai longe! Como tudo foi útil e preciso!
Olha, vem à janela... Lá em baixo no largo,
brincam, junto da fonte, os moços e as meninas.
Alegres todos, riem. Nem reparam
como é triste uma fonte que não corre.
O que hão-de eles saber ?! Têm cinco, seis anos...
Da janela
vemo-los bem. Vem à janela olhá-los,
felizes como nós...
Arrábida, Novembro de 51
in: Sebastião da Gama, Pelo Sonho É Que Vamos, Edições Arrábida
quinta-feira, 5 de março de 2015
Raul Brandão - MULHERES
«Outra
vez rebuliço — agora é na fonte. Balbúrdia. Algumas são desbocadas, e
aquela no auge da fúria curva‑se e bate palmadasem certo sítio, sobre as
saias — quando não faz pior e o mostra… Então o barulho ensurdece. —
Bateste no meu filho, grande porca! — Arrolada! — diz a outra. Arrolada é
a pior de todas as injúrias… Dois cântaros partidos nas cabeças. A água
inunda‑as e refresca‑as. E tudo volta ao silêncio. Só se ouve cantar
nos tanques e o bater compassado da onda no cais. Aí tornam a passar as
raparigas, com o cântaro à cabeça, a mão na cinta, e um fio húmido a
escorrer‑lhes pela cara, apesar da cortiça que usam à superfície da
água, para não se espalhar o líquido…»
in: Raul Brandão, Os Pescadores, ed. Vítor Viçoso e Luis Manuel Gaspar, Lisboa, Relógio D'Água, 2014
in: Raul Brandão, Os Pescadores, ed. Vítor Viçoso e Luis Manuel Gaspar, Lisboa, Relógio D'Água, 2014
quarta-feira, 4 de março de 2015
ANTÓNIO OSÓRIO - O HIDRÓMETRA
Quando media
o débito da água
antes
no furo artesiano
lavava o rosto
e bebia.
o débito da água
antes
no furo artesiano
lavava o rosto
e bebia.
De sua Mãe
se lembrava, devolvendo-o
(chuva) ao mundo.
se lembrava, devolvendo-o
(chuva) ao mundo.
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
Nausica
(Versão de Traz os Montes)
Manhanita de São João,
Pela manhã de alvorada,
Jesus Christo se passeia;
Ao redor da fonte clara,
Por sua boca dizia,
Por sua boca falava:
-- Esta agua fica benta,
e a fonte fica sagrada.
Ouviu-o a filha de el rei
D'altas torres d'onde estava;
Vestiu suas meias de seda,
Calçou sapatos de prata,
Pegou num cantaro de ouro
Á fonte foi buscar agua.
Lá no meio do caminho
Com a Virgem se encontrava;
Atreveu-se e Perguntor-lhe
Se havia de ser casada?
Casadinha haveis de ser,
muito bem afortunada;
Tres filhos haveis de ter,
Todos de capa e espada;
Um será bispo de Roma
E outro cardeal em Braga
O mais novo d'elles todos
Servo da Virgem sagrada
Ditosa a donzelinha
Que foi á fonte que foi buscar água.
Teófilo Braga, Romanceiro Geral Português, 2ª edição
A moça da fonte
(Versão de Traz os Montes da Nausica)
Minha mãe mandou-me á fonte,
Á fonte do Salgueirinho;
Mandou-me lavar o cantaro
Com a flôr do rosmaninho.
Eu lavei-o com areia
E quebrei-lhe um bocadinho.
-- Anda cá, perra
Onde tinhas o sentido?
Não o tinhas tu na roca,
Nem tão pouco no sarilho,
Tinha-lo n'aquelle magano
Que anda de amores contigo.
«-- Ó minha mãe não me bata,
Com varas de marmeleiro,
Que eu estou muito doentinha,
Mande chamar o barbeiro,»
-- O barbeiro já alli vem,
Com a lanceta na mão,
Para sangrar a menina,
Na veia do coração.
-- Mal o hajas, tu, barbeiro,
E mais a tua navalha
Fôste sangrar a menina,
Na veia mais delicada.
Teófilo Braga, Romanceiro Geral Português, 2ª edição
Minha mãe mandou-me á fonte,
Á fonte do Salgueirinho;
Mandou-me lavar o cantaro
Com a flôr do rosmaninho.
Eu lavei-o com areia
E quebrei-lhe um bocadinho.
-- Anda cá, perra
Onde tinhas o sentido?
Não o tinhas tu na roca,
Nem tão pouco no sarilho,
Tinha-lo n'aquelle magano
Que anda de amores contigo.
«-- Ó minha mãe não me bata,
Com varas de marmeleiro,
Que eu estou muito doentinha,
Mande chamar o barbeiro,»
-- O barbeiro já alli vem,
Com a lanceta na mão,
Para sangrar a menina,
Na veia do coração.
-- Mal o hajas, tu, barbeiro,
E mais a tua navalha
Fôste sangrar a menina,
Na veia mais delicada.
Teófilo Braga, Romanceiro Geral Português, 2ª edição
Sebastião da Gama - POEMA DEPOIS DA CHUVA
(a Maria Guiomar)
Depois da chuva o Sol -- a graça.Oh! a terra molhada iluminada!
E os regos de água atravessando a praça
-- luz a fluir, num fluir imperceptível quase.
Canta, contente, um pássaro qualquer.
Logo a seguir, nos ramos nus, esvoaça.
O fundo é branco -- cal fresquinha no casario da praça.
Guizos, rodas rodando, vozes claras no ar.
Tão alegre este Sol! Há Deus. (Tivera-O eu negado
antes do Sol, não duvidava agora.)
Ó Tarde virgem, Senhora Aparecida! Ó Tarde igual
às manhãs do princípio!
E tu passaste, flor dos olhos pretos que eu admiro.
Grácil, tão grácil!.. Pura imagem da Tarde...
Flor levada nas águas, mansamente...
(Fluía a luz, num fluir imperceptível quase... )
Estremoz, 12 de Fevereiro de 1951
Publicado em "A Teixeira de Pascoaes"
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015
Afonso Lopes Vieira - FEVEREIRO - A CHUVA
Nesta hora sozinha e pardacenta,
a chuva entra na aldeia...
No ar, cheio de musgo, a luz cinzenta
bruxoleia.
a chuva entra na aldeia...
No ar, cheio de musgo, a luz cinzenta
bruxoleia.
Através da vidraça,
vejo-a que chega: é uma mendiga escura,
trôpega e acurvada. E vem cansada.
Há, nos seus olhos vagos, amargura.
Oiço as suas passadas resignadas,
arrastadas por baixo da janela.
E digo para mim: -- É a chuva.-- E ela,
a triste vellha curva e turva, passa...
No ar, cheio de musgo, a luz cinzenta
bruxoleia.
E a chuva atravessa a aldeia.
Através da vidraça,
onde colei a minha face, agora,
contra o vidro tão baço como o céu,
vejo-a que vai: e vai p'la rua fora...
Não se ouve uma voz. E ninguém passa.
Tudo se sente só: a chuva e eu.
In: Afonso Lopes Vieira, Canções do Vento e do Sol, Ulmeiro, 1983
vejo-a que chega: é uma mendiga escura,
trôpega e acurvada. E vem cansada.
Há, nos seus olhos vagos, amargura.
Oiço as suas passadas resignadas,
arrastadas por baixo da janela.
E digo para mim: -- É a chuva.-- E ela,
a triste vellha curva e turva, passa...
No ar, cheio de musgo, a luz cinzenta
bruxoleia.
E a chuva atravessa a aldeia.
Através da vidraça,
onde colei a minha face, agora,
contra o vidro tão baço como o céu,
vejo-a que vai: e vai p'la rua fora...
Não se ouve uma voz. E ninguém passa.
Tudo se sente só: a chuva e eu.
In: Afonso Lopes Vieira, Canções do Vento e do Sol, Ulmeiro, 1983
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
Branquinho da Fonseca - O Arquipélago das Sereias
Ó nau Catarineta
Em que andei no mar
Por caminhos de ir,
Nunca de voltar!
Veio a tempestade
Perder-se do mundo,
Fez-se o céu infindo,
Fez-se o mar sem fundo!
Ai como era grande
O mundo e a vida Se a nau, tendo estrela,
Vogava perdida!
E que lindas eram
Lá em Portugal
Aquelas meninas
No seu laranjal!
E o cavalo branco
Também lá o via
Que tão belo e alado
Nenhum outro havia!
Mundo que não era,
Terras nunca vistas!
Tive eu de perder-me
Pra que tu existas.
Ó nau Catarineta
Perdida no mar,
Não te percas ainda,
Vem-me cá buscar!
Em que andei no mar
Por caminhos de ir,
Nunca de voltar!
Veio a tempestade
Perder-se do mundo,
Fez-se o céu infindo,
Fez-se o mar sem fundo!
Ai como era grande
O mundo e a vida Se a nau, tendo estrela,
Vogava perdida!
E que lindas eram
Lá em Portugal
Aquelas meninas
No seu laranjal!
E o cavalo branco
Também lá o via
Que tão belo e alado
Nenhum outro havia!
Mundo que não era,
Terras nunca vistas!
Tive eu de perder-me
Pra que tu existas.
Ó nau Catarineta
Perdida no mar,
Não te percas ainda,
Vem-me cá buscar!
Afonso Lopes Vieira - Cantares dos Búzios
Ai ondas do mar, ai ondas,
ó jardins das alvas flores,
sobre vós, ondas, ai ondas,
suspiram os meus amores.
No fundo dos búzios canta
o mar que chora a cantar
ó mar que choras cantando,
eu canto e estou a chorar!
Ai ondas do mar, ai ondas,
eu bem vos quero lembrar:
«a minha alma é só de Deus
e o meu corpo da água do mar!»
ó jardins das alvas flores,
sobre vós, ondas, ai ondas,
suspiram os meus amores.
No fundo dos búzios canta
o mar que chora a cantar
ó mar que choras cantando,
eu canto e estou a chorar!
Ai ondas do mar, ai ondas,
eu bem vos quero lembrar:
«a minha alma é só de Deus
e o meu corpo da água do mar!»
sexta-feira, 30 de janeiro de 2015
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
ANTÓNIO CARNEIRO - AS ALGAS
Quanto tempo vogaram, embaladas
No seio profundíssimo do mar...
E, ao rolá-las na praia, a soluçar
Fica a onda de as ver abandonadas...
A novo beijo da água, de mansinho
As algas se insinuam, no desejo
Saüdoso de voltar; e, num harpejo,
Despede-as o mar, devagarinho...
Fonte de vida eterna, inexaurível,
Sendo só com a vida compatível
— A desse grande túmulo: a Terra,
Voragem pertinaz, assustadora,
Vai o mar rejeitando, hora por hora
Mortes que fez, as mortes que ele encerra.
António Carneiro, 'Solilóquios: Sonetos Póstumos', 1936
As algas se insinuam, no desejo
Saüdoso de voltar; e, num harpejo,
Despede-as o mar, devagarinho...
Fonte de vida eterna, inexaurível,
Sendo só com a vida compatível
— A desse grande túmulo: a Terra,
Voragem pertinaz, assustadora,
Vai o mar rejeitando, hora por hora
Mortes que fez, as mortes que ele encerra.
António Carneiro, 'Solilóquios: Sonetos Póstumos', 1936
Subscrever:
Mensagens (Atom)