quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ibn Abdun de Évora



Aflige o Destino, depois do olhar, com marcas.
Porquê chorar agora por sombras e quimeras?

Cuidado! Tem cuidado! Nunca é demais lembrar-te:
Entre o dente a garra do leão não adormeças!

Não deixes que a vida te iluda e entorpeça,
Se o condão dos seus olhos é vigiar sem trégua.

Oh, noites! Queira Deus afastar-nos do seu ócio,
Noites que a Sorte muda, com mão traiçoeira.

O seu prazer engana: é flor que traz no seio
A víbora que ágil se atira a quem a colhe.

De tanta dinastia que Deus favorecera
O que ficou? Há rastos? Pergunta à tua memória!


IBN ABDUN DE ÉVORA
(c. 1050 - 1135)


O Extremo Ocidente Ibérico

O Extremo Ocidente Ibérico

Cláudio Torres *

Janus 1999-2000

As fronteiras geoclimáticas do Mediterrâneo, matriz das mais velhas civilizações marítimas e urbanas, são o enquadramento dos territórios e espaços onde se implantou fortemente, primeiro o Império Romano e depois o Islão. A civilização islâmica não pode ser divorciada deste seu contexto geográfico e cultural. Não podemos explicar as mutações religiosas do século VII, com a fulgurante expansão muçulmana, mencionando apenas as invasões de povos originários das Arábias e de outras orlas desérticas exteriores ao mundo civilizado das grandes cidades marítimas.

A islamização é um processo complexo que não pode ser dissociado das tradições urbanas mediterrânicas onde os sistemas religiosos e nomeadamente o cristianismo estavam nessa altura a ser sacudidos por graves cismas teológicos. A nova mística religiosa, a busca das origens, a boa nova do Corão foi assimilada e difundida no meio citadino e mercantil e não, certamente, imposta a fio de espada pelos esquadrões militares de profissionais da guerra.

Se aceitarmos estes pressupostos, já poderemos melhor enquadrar os fenómenos políticos, sociais e artísticos acalentados durante os séculos do Islão Ibérico e que definem uma civilização e um estilo próprio e irrepetível.

A história da Península Ibérica tem sido marcada tradicionalmente pela invasão das tropas de Tarik em 711 e pela mítica batalha de Guadalete, quando as hostes da cristandade, vencidas pelos sarracenos, teriam sido obrigadas a refugiar-se nas montanhas do Norte. Hoje porém, na explicação de uma tão genial estratégia e de um tão rápido e eficaz proselitismo religioso que, em meia dúzia de anos se impôs a quase toda a Península Ibérica, as investigações arqueológicas, e de um modo geral a historiografia mais recente, tendem a desvalorizar os factos militares.

Em vez de uma maciça instalação de muitos desmobilizados como colonizadores-povoadores, opta-se claramente por um fenómeno de aproximação e síntese cultural liderado – por embarcadiços, artesãos e mercadores, que aproveitaram a abertura das grandes rotas marítimas para fundar ou revitalizar um outro espírito de cidade. Em vez de cenários urbanos destruídos ou arruinados do velho Império Romano, em vez de cicatrizes deixadas pela imposição de novas formas de vida e civilização, nota-se, a partir do século IX, um processo generalizado de ressurgimento do labirinto urbano da cidade segmentada mediterrânica. Esta linha de continuidade civilizacional será apenas interrompida pela "Reconquista", quando são introduzidos nas terras do sul os primeiros corpos estranhos de uma nova formação social que, de um modo geral, catalogamos como feudalismo.

A islamização da Península Ibérica, ao contrário de uma imposição militar, resultou sobretudo de uma rápida conversão das populações citadinas mais abertas à troca de mercadorias e de ideias, tendo naturalmente acompanhado e incentivado a abertura de novas rotas e mercados com um evidente acréscimo em quantidade e variedade dos produtos e artefactos. A importação, por vezes longínqua, de tecidos, cerâmicas, armas e metais lavrados, além de alimentar novos gostos e apetites, vai também encorajar produções locais que, embora mantendo algumas referências ao modelo inicial, em breve se autonomizam, iniciando linguagens estéticas inovadoras e consolidando outros circuitos regionais.

Apesar de um relacionamento frequente entre o Oriente mediterrânico e o Al Andalus – como é referido na conhecida documentação do século XI depositada na sinagoga Genisa do Cairo – um dos maiores centros abastecedores dos mercados do Gharb parece ter sido a região de Tunis e Kairouan, na actual Tunísia, que durante os séculos IX e X recuperam a sua importância como centros religiosos e culturais. No Mediterrâneo Ocidental, o intercâmbio económico e os laços culturais eram nessa época tão intensos como nos tempos de Santo Agostinho (séc. V d.C), em que os modelos arquitectónicos e decorativos da arte cristã da velha Cartago servindo de modelo às basílicas e baptistérios da Hispânia meridional, veicularam também novas ideias, muitas vezes pouco ortodoxas, que serviram de matriz aos mais variados cismas e heresias.

Só a partir dos séculos X e XI a faixa costeira da Argélia Ocidental e as actuais cidades portuárias de Ceuta ou Tânger começam a desenvolver-se por influência de Córdova e de outras capitais do Al Andalus que em todo o Ocidente se afirmara incontestavelmente como centro polarizador. Atravessar o golfo do Algarve, ou o mar de Alboran, ligando Faro e Arzila, ou Almeria a Argel, passa a ser bem mais fácil e rápido do que viajar, por exemplo, entre Tavira e Lisboa, em cujo percurso se levantavam os mares agitados e os ventos adversos do cabo de S. Vicente.

Na Península Ibérica é notória uma sintomática coincidência entre o limite dos territórios mais romanizados, as fronteiras interiores do Al Andalus e as grandes cordilheiras montanhosas que marcam os confins setentrionais geoclimáticos do Mediterrâneo. Esta barreira natural das Serras – como os geógrafos e cronistas andaluzes chamavam à sequência montanhosa de Guadarrama, Gredos e Estrela – sempre separou as culturas mediterrânicas das civilizações do Norte, tradicionalmente ligadas aos reinos continentais de além Pireneus. Aqui, nas cumeadas que repartem as águas das bacias hidrográficas do Tejo e do Douro, passa, visivelmente bem marcada, a linha separadora dos falares do Norte dos falares do Sul, das formas e técnicas de construir e de habitar, dos hábitos e costumes ligados a mundos com raízes antropológicas e culturais distintas.

Aliás, é tão poderosa esta fronteira natural e também cultural, que as suas melhores passagens e portos de atravessamento irão constituir, cada um deles, como que a matriz geradora dos quatro novos reinos cristãos talhados a fio de espada sobre as terras do Sul. Depois da entrada do Ebro que justificou o Reino de Aragão, dos desfiladeiros da serra de Guadarrama que desembocam na meseta de Castela e da velha Via da Prata, sobre a qual se estendeu o reino de Leão, destaca-se o último e mais ocidental corredor Norte-Sul, que, sobrepondo-se também a uma importante via romana, ligava Braga a Lisboa. Uma velha ponte sobre o Mondego, no local onde as suas águas amansam e se ergue Coimbra, marcava simbolicamente o cruzamento das fronteiras do Sul e o ponto simbólico unificador do Reino de Portugal.

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711 - 2011