segunda-feira, 17 de setembro de 2018

ANTÓNIO MARIA LISBOA - ISSO ONTEM ÚNICO




(…)
RAOMOMAR

amor confuso, amor repetido, amor esotérico, amor mágico
– MAR

mar perdido de conchas no meio do mar
mar de marés justapostas de amor num mar de marfim
perdido no teu joelho de marfim.
mar de bosques que anuncia ao estrangeiro terra perfumada
oceano no teu oceano de olhar
Isís a mulher de Osíris – a realidade misturada.
no MAR.

mar que te apontei do alto da torre coberta pelo nevoeiro
pelo avião que atravessa o espaço
pelo incêndio que percorre o mundo num autocarro
pelo soerguer do teu corpo semi-quente na madrugada

mar azul-vermelho queimado de arestas
mar de dedos frios, de velas sibilinas na noite de cristal
mar de sonâmbulos esquecidos a medir o espaço com fitas de estrelas
mar de passageiros estranhos e abismados
mar de casas altíssimas onde habitam as cidades

MAR para que não me chegam os olhos
mar branco de nuvens sobrepostas para lhe podermos passar por cima
mar de esquecimento, de objectos sensíveis e distintos
mar onde guardei o aquário azul que trouxe até hoje na memória

e só hoje te espalho para o mundo MAR
onde é possível e provável o envenenamento total da espécie onde
descanso a minha mão esquerda sobre uma pantera negra e todos os
dias mergulho em fogo

Amor sem nexo, amor contínuo, amor disperso – MAR

mar com uma bala direita no cérebro
mar sem apoio em nenhum ponto do espaço, mas preso apesar de tudo
numa enorme teia diabolicamente construída para conseguir ser
livre
mar de submarinos insondáveis que navegam o infinito do mar
mar espacial de sons, de cores, de imagens, de mil anos passados que
percorremos

MAR que flutua no MAR abusivamente medonho

amor esquecido, amor distante, amor insolente

RAOMOMAR

(…)

António Maria Lisboa, Poesia, Biblioteca editores Independentes, Lisboa, pp 90-91

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

António Botto - Poema do Mar




Eu ontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.

Chorámos, rimos, cantámos.

Falou-me do seu destino,
Do seu fado...

Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Pôs-se a cantar
Um canto molhado e lindo.

O seu hálito perfuma –
E o seu perfume faz mal!

Deserto de águas sem fim...

Ó sepultura da minha raça,
Quando me guardas a mim?...

Ele afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...

Ao longe, o Sol, na agonia,
De roxo as águas tingia.

- Voz do mar misteriosa;
Voz do amor e da verdade!
Ó voz moribunda e doce
Da minha grande saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...

................................................
E os poetas a cantar
São ecos da voz do mar!



https://arquivos.rtp.pt/conteudos/joao-villaret-16/
Aos 16m53, João Villaret declama o poema de António Botto





terça-feira, 11 de setembro de 2018

ROSA MARIA MARTELO - A PONTE AFUNDA-SE NO RIO




Dito de outro modo, sem justificação ou explicação alguma, há, eu sei, um avanço da imagem na linguagem. Entre uma e outra, nesse avanço, um salto, um vazio (mas não um salto no vazio). Há um pensar por imagens ao qual as palavras chegam com atraso, quase como se delas ficasse só a música lançada para diante. É ainda a linguagem, mas já não são palavras, são imagens, livres, que as palavras falham ao circundar Há um azul que excede a palavra azul, há esse azul, e quando a sua mancha alastra, atrasa-se qualquer palavra acerca disso. Se A. L. diz «pára-me de repente o pensamento», posso imaginá-lo precisamente aí. O que então escreve e não escreve envolve uma pausa fulminante. Mas nunca poderei dizer isto, a ponte afunda-se no rio.


Rosa Maria Martelo, Siringe, Averno, 2017, p.66

domingo, 2 de setembro de 2018





Fotografia  de Inês Dias
António Barahona, AOS PÉS DO MESTRE (Sexto Tomo da Suma Poética), Lisboa, Averno, 2018