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sexta-feira, 3 de maio de 2019

Inês Dias - RUA DOS CAVALEIROS DA ESPORA DOURADA





Para a Ginja



Imagino-os sempre
de olhos cegos,
de quem correu o mar
e aprendeu outra cor
para o mesmo sangue
– gridelém.

Não se apressam.
O coração mais fielmente negro
parou entretanto de bater,
deixando-lhes o peso
do seu embalo nas mãos vazias;
e trazem colada ao corpo
a cal da memória
– raparigas com cabelo de linho,
olhos de esmalte.

Chamam cada onda
pelo seu nome,
agora que todas elas são cinza
de lume familiar.
Tornaram-se veladores,
guiados pelo desatar invisível
da água nessa longa noite
– mortos ainda à procura
do calor de um gato.



Inês Dias
in AA.VV., Sete, volta d' mar, 2018

domingo, 2 de setembro de 2018





Fotografia  de Inês Dias
António Barahona, AOS PÉS DO MESTRE (Sexto Tomo da Suma Poética), Lisboa, Averno, 2018

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Inês Dias - RECONQUISTA


Para a minha mãe

Do meu bisavô, ferreiro e construtor
de pontes, conheci apenas as iniciais,
gravadas na pedra com que tomara
o último dos elementos. Mas a sul
do passado, o meu avô repetia-lhe
ainda os gestos, ensinando-me a travar
as marés com pequenos diques improvisados –
paus de gelado, seixos, pedacinhos de cordel.

Nunca mais o futuro voltou a ter pé
como nessa Praia do Amanhã tão literal,
tão só para mim. Aprendi a bordar
iniciais, às vezes na própria pele,
a construir diques cada vez mais frágeis
de palavras, pontes entre o meu corpo
e a margem dos outros.

De pouco vale: geração em geração,
ano a ano, vamos perdendo a luta
contra o avanço das águas.

- Inês Dias, In Situ,
Lisboa, Língua Morta, 2012

quinta-feira, 28 de junho de 2018

domingo, 25 de março de 2018

Manuel de Freitas - Hotel Praia, Quarto 508



Para a Inês


I

São ruas que vão até ao mar, abruptamente
- ou é o mar que, desde sempre, nelas
encontrou morada? Indiferentes a esta pergunta
ociosa, as mulheres falam de casas, discutem
preços e amarguras, alugam barracas por um dia.


E vestem-se de luto ou de cores tão improváveis
como Deus, enquanto distribuem bênçãos,
pequenos rancores, rios de ouro sobre o peito.
Será talvez um modo atávico de exorcizarem a fome
nas casas que não têm mas alugam, sentadas junto ao mar.

Não sorriem nunca, por excesso ou falta de razões.


II

Não esperava, trinta anos depois, reconhecer
a Nazaré. Igual a sim mesma, fintou o progresso
no desmando da morte e no cheiro seco
dos carapaus jacentes (só um gato preto, sem
jeito para o negócio, foi poupado ao extermínio). 

Diferente é apenas vê-la agora desta varanda,
contigo ao lado, e perceber a alegria que
irmana dos telhados e balcões, sob os farrapos
de uma língua apátrida que nem o amor
nem o mar conseguiriam devidamente pardonner

Um homem de fato completo deixou-nos ver a lua.


III

Há quem veja na sereia, que um dia se cansou,
razão suficiente para tantas mortes.
E há quem desça sem temor as escadas que vão
do Forte ao rochedo do Guilhim. Nós, menos
confiantes, olhávamos as grutas, escolhíamos pedras. 

Conchas com água dentro, recentes pedacinhos de ossos.


IV

E era como se caminhássemos sobre a lua
e o vento de Agosto nos juntasse lado
a lado, quando já não há degraus.



Pedacinhos de Ossos
Manuel de Freitas
Averno, Lisboa, Novembro 2012

terça-feira, 18 de abril de 2017

Inês Dias - JOAQUIM E JUDITE




Para o Manuel,
na Nazaré


Fizera toda a viagem com ele ao colo.

Queria despedir-se junto ao mar,
mas as partidas são tão imperfeitas
demasiado enferrujada para abrir
se o coração é uma caixa de cinzas
ao vento. Mesmo agora, depois de lavada
a última partícula que se lhe colara
à pele, sabia que o amor passara a ter
o peso exacto das ondas e, por isso,
nunca mais deixaria de o ouvir.

E ria, apontando-nos mais um turista
à procura das marcas do milagre
na pedra. Como se não fosse milagre
suficiente cada volta do mar: sermos
ainda reconhecidos, sete passos
dentro da noite, quando andamos
pelo mundo a povoá-lo de fantasmas.

sábado, 26 de novembro de 2016

GÉNESIS





ilustração de Daniela Gomes


GÉNESIS
Almeida Faria, Helder Moura Pereira, Manuel de Freitas, Rui Miguel Ribeiro, Luis Manuel Gaspar, Inês Dias, Rui Pires Cabral, «Génesis», ilustração de Daniela Gomes, in 'Suroeste — Revista de literaturas ibéricas', n.º 4, Badajoz, 2014

ALMEIDA FARIA
PRIMEIRO DIA

Há trevas à tua volta
trevas só
sobre esta terra
desolada e convulsiva
sem sentido nem fim

As trevas pesam
o dia demora a vir
a terra espera há milénios
o 'homo erectus'
o 'homo heidelbergensis'
o 'homo sapiens'
o homem que deixe
na pedra em rolos de papiro
em tabuinhas em pergaminho
sinais e signos nomeando o mundo
os deuses invisíveis
as sombras
de sombras
do primeiro dia

Abismo e Caos copularam
misturando suas águas
na solidão da escuridão

Outras línguas contariam
outro primeiro dia
no Livro Primeiro
dos cinco quintos:

'Génese'
'Êxodo'
'Levítico'
'Números'
'Deuteronómio'

Torrentes de homens e mulheres
dilúvios devoradores
desde Gilgamesh até Noé

Palavras para a vertigem de um dia
sem sentido nem fim
dia desolado e convulsivo
sobre esta terra de trevas só
à tua volta

***

HELDER MOURA PEREIRA

NÃO VOS LEMBREIS DE MIM NEM DA MINHA DOR

Nem sequer é corpo, não é corpo
que tenha nome, é linha, figura,
mera silhueta, está num quadro
onde tudo é só água, figura lavada
em lágrimas, paisagem de mar vasto
ou rio à beira, ponte, passagem.
A figura é um traço projectado
num horizonte onde ainda não há
estrelas, chegou-se à beira do mar
depois de muito ter pensado
no seu futuro e no passado
de todos nós. Vai anoitecendo,
já quase não contrasta a linha
da silhueta com as margens
das formas e das cores, tem a boca
colada, presa, agrafada, não há
palavras, há o silêncio, sim, e água
a toda a volta, os olhos ainda vêem,
mas pouco, já não é preciso falar
e já quase não é preciso olhar.
A mão que há pouco começara
a ensinar a outra mão a escrever
desiste, também já não vale a pena
escrever. A figura é de um homem
entre tantos, chegou à beira da água
lavado em lágrimas como se estivesse
dentro de um drama, mas não era
bem um drama, a não ser que seja
drama sentir a confusão clara. E agora?
O que se segue agora? Um estrondo
de espuma numa rocha, e outro
estrondo, mais um estrondo, ritmo
do princípio de uma construção,
crescendo, força, decisão. E assim,
com a bomba do absurdo numa
das mãos e a bomba da inocência
na outra, põe-se a pensar. Convém
separar as águas. Ir para casa separar
as águas. Estar à altura de tanta
água sem sal em cima, de tanta água
com sal em baixo. Matéria única,
fio de lágrimas (não, os animais
não podem chorar) e só então se vê
a regressar por um carril, pelo fio
de um caminho, uma silhueta
antiga levantando a cabeça quando
sente que lhe chove na cabeça.
É uma silhueta que gosta de sentir
chuva na cabeça. Avança devagar.
Vai para casa. Tanta água e sempre
tanta sede, tanta sede. Vê-se agora
muito bem que tem uns óculos escuros
de funeral. A silhueta murmura
não vos lembreis
não vos lembreis de mim
não vos lembreis de mim
nem da minha dor.

***

MANUEL DE FREITAS

POEM OF THE RIVER

para a Inês Dias

Tinha, desde criança, a fantasia de ir a pé até às margens do Tejo, partindo do Vale de Santarém. Sabia que o rio estava próximo — ou era, pelo menos, alcançável — desde que se seguisse o «Caminho de Fátima», nome que sempre me causou alguma estranheza. Só hoje, com quarenta anos, ousei fazer esse percurso.

*

Vira-se à esquerda, logo a seguir à 'Légua', e são muitos os lamaçais e os campos de papoilas que nos convidam a parar. Mas não quisemos desistir. Já desesperávamos de haver Tejo quando, após um sereno concílio de cavalos, surgiu uma estrada de alcatrão que nos levou às Caneiras. Nem sabia que ficava ali, a «apenas» seis quilómetros, aquela aldeia piscatória.

*

Retemperámos forças na 'Taverna do Ramiro' — não com sável, enguias ou fataça, mas com uma opulenta grelhada mista. Só depois percorremos as vielas estreitas, onde casas de madeira assentam em palafitas, e cães e gatos parecem ter encontrado o paraíso. Trata-se, como seria de esperar, de um paraíso triste: as madeiras coloridas acusam o desgaste do tempo, a pobreza audível destas casas onde ainda mora gente. Porta a porta, um embarcadouro mínimo confirma que o rio continua a ser uma débil fonte de rendimento ou de aventuroso recreio.

*

O mais estranho, porém, foi ter reencontrado nas Caneiras, onde nunca estivera, a «reconstituição» exacta de uma aldeia ribeirinha que surge em muitos dos meus sonhos. E que hoje, ao teu lado, se revelou mais bela do que alguma vez sonhara, na sua altiva imperfeição, na música calada dos barcos — tão pequenos e vazios como um poema que chega, finalmente, ao rio.

***

RUI MIGUEL RIBEIRO

O QUARTO DIA

Se queres saber como era
pensa no escuro no interior de um fruto.
Em sucessão, da sua força reclusa,
conhecem-se duas curvaturas, divididas
por duas rotações nas linhas sem altura
dos seus pés à firmeza das sábias geometrias.

Uma exterior, de brancura cega, o nulo manto,
onde o vidro não se distingue da pedra
na esfera maior que agora inicia.
Uma interior, onde as sombras não têm forma,
e nas trevas que repartem o prodígio, o mundo,
a envelhecer inciso, interroga.

Se queres saber como será
pensa que das formas em que o mesmo fruto muda
uma vez caído, ou por mão colhido,
delas mantém, insuprível, a película de luz
que todas as coisas veste.

***

LUIS MANUEL GASPAR

V

A manhã rebate as asas na ombreira;
janelas de pau, penumbra e parapeito
onde o navio desatado estancou,
um fio de oiro captado pelos mastros

Aderem os dedos ao pêndulo perdido,
ao lençol semicerrado no aquário.
Pela escada move os peixes o senhor
das clarabóias. À névoa, de olhos tristes,

veio dizer-me de véspera que morri.
Ganhando altura, quando os ferros se encontram
a meio do rio, o sexo inflado nas mãos

de anjos inda pouco destros, mal saídos
das locas. E foi a ânfora desfeita,
a tarde e a manhã como um tiro na têmpora

***

INÊS DIAS

ODISSEIA DE BAIRRO

'If we return.
If we return.'

Genesis P. Orridge

Esperou. No verso da página.
Até o casal quebrar o beijo
que quase interrompera a rua do mundo;
até a noite sufocar,
uma a uma, as ilhas de luz,
depois as vozes.

Só então regressou
à cidade sem sombra
(na barriga de madeira crua
do segredo), sublinhando o caminho
com migalhas de tinta maiúscula
sobre as paredes cegas.

Um pequeno e doméstico auto-de-fé
que evitasse à história re-
cair em esquecimento:
«JÁ DISSE PARA
NÃO TE METERES
COM O MEU MARIDO!»

***

RUI PIRES CABRAL

SÉTIMO DIA

Domingo, os lódãos
ficam mais sérios
no retrato

do jardim. Descansam
as criaturas, descansa quem
as criou, algures longe

da vista, longe do coração.
Descansa o cão extraviado
à sombra do contentor

e o ministro das finanças —
sempre, sempre tão
cansado — no seu reduto

murcho. Domingo, linha branca
que atravessa um olival:
'já deste o ramo

ao padrinho?' Vagares
de um mundo pequeno
ao domingo, no palheiro,

em histórias de papel velho
cor de açúcar mascavado —
'eu bem não queria

morrer.' Domingo nos montes
em volta, domingo na ilha
de Kirrin,

domingo em toda a parte,
de nenhures, de Deus
nenhum.

domingo, 16 de novembro de 2014

Inês Dias - Assim que a estação morria




fotografia de Inês Dias,  2014




"Grief returns like the rain,
like the night."

IRIS MURDOCH


Assim que a estação morria,
o mar vinha buscá-la
entre salvas e limos
e restos de outros naufrágios.
Os banheiros desmontavam a praia,
arriando bandeiras friorentas
enquanto eu, rei sem reino
para trocar pelo cavalo,
regressava então ao exílio.

À espreita, rancorosos, os dias
úteis, caçadores com alma
pela trela e o prazer
de atirar para ferir;
atrás de mim o verão,
como água salgada
a lamber uma ferida aberta.

A tua chuva, poeta, 
já nada me consegue ensinar:
tornei-me um cego
a quem cortaram as mãos
para não ler mais
o mundo, invariavelmente,
repetidamente, ainda ali.


Inês Dias, Tempos Vários, Paralelo W, Janeiro de 2014