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terça-feira, 23 de julho de 2019

MIGUEL MARTINS - P.B.




Ficam os teus olhos a marulhar por aqui
como uma gruta de ecos em que a história persiste
ou conversa que se tem a sós para dentro do vaso
que nos vai girando nas mãos e na roda de oleiro
já sem destinatário ou serventia
senão talvez guardar a nossa dor
na prateleira mais alta da memória,
a da beleza inútil,
a dos versos sem raiva pelo mundo
ou apenas aquela raiva mansa
que votamos ao gemido da rola que nos tolhe a leitura,
antes de demolharmos pão para o seu almoço.

Da última vez que te vi,
ontem ou há cem anos,
o sofrimento e a fadiga,
a fadiga do sofrimento,
não te tinham ainda cansado a alegria
e gosto de pensar que assim tenha sido até ao fim,
que tenhas partido com algum horizonte luminoso
nesses olhos de um azul que inventava os néones
de uma noite de verão impossivelmente gloriosa,
toda ela cinema e juventude.

E eu,
alquebrado, impotente,
indecente e loquaz,
sinto-me culpado pelo pouco motivo disso tudo
e não resisto a dizê-lo à tua campa,
certo de que, como sempre, me absolverás
e, por um par de horas, passearemos na praia,
num canto mal iluminado da cidade.

Não há como o fim para nos lembrar o princípio,
que pode ser no meio, cada cintilação,
cada metro galgado às cavalitas do sonho,
numa confusão de pés e mãos e todos num só corpo,
o cardume da noite,
um barco humano
no meio de um oceano que é só Tejo
ou a voz misteriosa,
o ruído branco,
talvez negro,
certamente cinzento,
que nos adormece
e desperta,
adormece
e desperta,
que nos adormece
e agora
não
.

Miguel Martins
27/03/19


Retirado Daqui: 

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Miguel Martins - Aldeia




Adoro as levadas caudalosas,
serpenteando por entre avencas,
levando consigo pequenos blocos de terra,
ensopando a terra,
matando a sede a raízes
que mais parecem teias de aranha
cujo centro se esconde a vários palmos de distância
ou longilíneas tarântulas

Adoro os Verões iniciáticos,
a aprendizagem de caminhos e trabalhos sob as copas densas,
os banhos na represa por entre libélulas e alfaiates
e o esgar de nojo,
quando, da ponte,
se avista lá ao fundo um gato morto
preso nas silvas das margens de água límpida

Adoro os Invernos laboriosos,
as encostas escorregadias,
a lama nas botas,
a misteriosa caminhada até cada courela,
o gesto medieval que ceifa o talo à couve,
o toucinho na salgadeira

Adoro o regresso do ruído,
a chegada das crianças da cidade,
adoro vê-las subir às amoreiras,
as mãos miúdas confiando em nós de madeira centenária, enquanto os pais me visitam na adega,
cortamos uma broa e abrimos uma garrafa de morangueiro fresco

Adoro as casulas e os paramentos na sacristia
e o pó que os cobre nos meses de ausência do padre
e o branco nu da capela
e a pedra nua de todas as outras casas,
que é da cor das folhas de tabaco secas da plantação que o Eduardo tem ao fundo do povo e esconde dos fiscais
(ele que já viu mais mundo que todos os fiscais da região e trabalhou na PanAm e foi aos Estados Unidos)

Adoro as trutas apanhadas à mão e o viveiro de trutas, nossa única indústria desde que ruiu o moinho de água
e só Deus sabe quanto isso me custou e custa,
saber que não mais sentirei o cheiro do milho acabado de moer

Adoro as idas à mercearia da aldeia vizinha
e a pouquíssima variedade de produtos que aí se encontra,
como se estivéssemos em tempo de guerra
ou o século XX não ousasse começar por aqui

Adoro os fogões a lenha,
as enormes arcas de nogueira,
os colchões de palha de milho
confortavelmente concavados por décadas de hóspedes e a remota possibilidade de serem do tempo
em que João Brandão, “o terror das Beiras”, se acoitou nestas casas

Adoro os audazes mergulhos da ponte metálica coberta de caganitas de cabra
e as cabras
e a mão desusada que as conduz
e que sabe amar quando é chegada a noite
ou quando é chamada a iluminar um recanto de sombra

Adoro as lamparinas e os morcegos que vêm chupar o azeite das torcidas,
o cheiro das queimadas e o cheiro do tojo
acabado de roçar,
e as pequenas manchas roxas
que as amoras esmagadas imprimem no chão

Adoro as ameaças e as benesses do céu
e a certeza de que nelas se escondem todas as respostas da irrevogável vontade de Deus
e adoro como uns são pais dos filhos dos outros
e deixam Deus fora da questão
e não pegam em espingardas

Sim, adoro esta aldeia sem caçadores
em que os pardais só temem os espantalhos
e os gritos que ecoam desde o outro lado das montanhas

Adoro o tio Alfredo, que espantava as almas penadas, batendo com uma corda nas costas,
e o primo Alfredo
que trabalha tanto como quem trabalha mais
e mimetiza o mesmo gesto
para afugentar as dores que isso lhe dá por todo o corpo

Adoro a iniciação sexual dos rapazes,
quase sempre com outros rapazes,
anos antes de terem uma rapariga,
o que só acontece aos doze anos e depois não quer dizer nada,
que é como quem diz, fica vida fora

Adoro o orvalho desenhando folhas de plantas nos vidros das janelas
e janelas nas folhas das plantas
e a nitidez de todos os veios destas
e de todas as veias na pele das mulheres,
que nunca tomaram banhos de sol
e sempre cobrem as cabeças com lenços
ou chapéus de palha

E adoro-vos a vós
que nunca vistes nem vereis a minha aldeia
e acabais de a adoptar pelo útero

(Atol, Clube dos Poetas Vivos, Lisboa, 2002)


Leitura de Raquel Marinho (clicar para ouvir)

terça-feira, 1 de maio de 2012

Para o Ricardo Martins

são as minhas mãos que tremem até não poder segurar os talheres
sou eu sentado na cama, transido de medo de acordar para viver
sou eu a vomitar de medo como desde os tempos da escola primária
sou eu a driblar o futuro, acabando por sair pela linha lateral
sou eu agora em espasmos, assemelhando-me a um campo de minas
sou eu agarrando-me aos poucos que me disseram alguma coisa
eu tentando não cair, não sabendo como vim parar a esta copa
sou eu com a morte nos olhos que trago dentro dos meus olhos
eu, fidelíssimo traidor, não entendendo porque me achei só
eu a fugir de encontrar-me e sempre na exaustão de me encontrar
eu em cada vivo, em cada morto, em cada esquina da cidade
sou eu não conseguindo adormecer e, adormecendo, não dormindo
sou eu sem saber fugir a uma luxúria que jamais me faz feliz
eu a habitar um corpo doloroso, como semáforo amarelo
eu vendo outra coisa em cada coisa e em tudo palavras de papel
eu carregando o peso do passado sobre um futuro inexorável
eu mais mortal que os mortais e defrontando a imortalidade
sou eu com a cara e a alma à venda nos escaparates insensíveis
eu pedindo esmola a quem despreza o que lhe posso dar
sou eu rindo-me de mim para evitar chorar por tudo o mais
sou eu irremediavelmente sozinho para toda a eternidade
sou eu sem música de fundo, vendo-me num espelho desbotado
sou eu a fumar como se me defumasse para me poder comer
sou eu silenciando um grito por minuto e escrevendo no mel
eu vestindo toda esta nudez, só para só amar a verdade do amor

e se isto é difícil de entender, dizendo-te outra coisa não seria eu

Miguel Martins

PROIBIDA A ENTRADA A ANIMAIS (EXCEPTO CÃES GUIA), Língua Morta