RESUMO
No sítio do actual Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, se descobriu em 1996, e de maneira
fortuita, a pré-existência no local de um sítio romano. Apresentam-se agora os escassos
dados inéditos relativos ao arqueossítio com o CNS 37436.
Relaciona-se, no texto, o sítio de Prazeres com as restantes ocupações do baixo vale da
Ribeira da Alcântara, que incluem um eixo viário regional romano importante e a possível
existência de um locus sagrado conectado com a deusa Nabia.
A panóplia de materiais inclui elementos que cobrem um espectro cronológico entre o
séc. II a.C., pelo mais, e o séc. IV-V d.C., pelo menos, e incluem materiais de construção
(olaria de construção e mosaico) que atestam a capacidade aquisitiva da comunidade.
O local levanta problemáticas pertinentes acerca da antiguidade relativa dos assentamentos
rurais dos agri olisiponenses e da forma como esta assume expressão material arqueológica,
aspectos essenciais para a construção de uma leitura da dinâmica de ocupação do espaço
rural nas etapas iniciais da Época Romana que está, todavia, longe de suficientemente
esclarecida
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Detalhe da panorâmica de Lisboa de Grabriel Del Barco, c. 1700, com indicação dos sítios romanos conhecidos e da ponte Alcântara (Museu Nacional do Azulejo e Cerâmica) |
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... o espaço do Vale de Alcântara era atravessado pela principal via terrestre que comunicava com os espaços ocidentais da Península de Lisboa das áreas de Oeiras, Cascais e sul da
Serra de Sintra, densamente povoados ao longo da Época Romana(CARDOSO, 2002). Um
dos principais elementos deste itinerário terrestre era, justamente, a ponte de Alcântara, cuja remota origem romana é altamente provável, considerando o próprio topónimo que remete
para a sua existência já no período medieval muçulmano. Construída em alvenaria, possuía
ainda em 1582, aquando da batalha de Alcântara, 6 arcos, como surge representada em 1662,
e os registos de 1727 apontam-lhe 90 metros de comprimento e uma largura de 6,20 metros
(SILVA, 1942). Seria depois desmantelada em 1887.
Remontando ao século XIV, a Porta de Santa Catarina da muralha fernandina de Lisboa,
genericamente localizável na zona do Chiado lisboeta (Largo das Duas Igrejas), dava acesso ao
trajecto desta estrada, então nomeada «caminho da Horta Navia». Este topónimo aparece em
documentação manuscrita medieval já desde o séc. XIII (reinados de Afonso II ou III), sob a
forma latina «Hortus Navia» (SILVA, 1942: pág. 75), aspecto que já havia chamado a atenção de
Leite de Vasconcelos, que supôs a existência na zona da antiga foz da Ribeira de Alcântara de
um santuário de origem pré-romana dedicado a Nabia, divindade aquática de cariz profilático
(REIS 2017: pág. 256; VASCONCELOS 1988 [1905]: pp. 278-279).
Na esteira daquele erudito português, Vieira da Silva (SILVA, 1942) e, mais tarde, José
d´Encarnação (ENCARNAÇÃO, 1975) e José Cardim Ribeiro (RIBEIRO, 1982-83: pp. 6-8),
iriam defender a probabilidade da existência de um espaço sagrado devotado à Deusa Nabia/
Navia nas imediações, possivelmente associado à ocorrência de águas na encosta meridional e
ocidental dos Prazeres: ali se encontra ainda hoje o remanescente da «Fonte Santa», local alvo
de especial devoção popular documentada desde o séc. XVII, depois transformado num chafariz na centúria de oitocentos. A estrutura hidráulica ainda hoje subsiste, discreta
e com lastimável enquadramento, na actual Rua de Possidónio da Silva, artéria degradada que
leva o nome de um dos principais arqueólogos portugueses do séc. XIX.
O sugestivo topónimo de Horta Navia era aplicado a uma vasta parcela de terreno no sopé
do pequeno vale encaixado entre a vertente norte das Necessidades e a encosta sul do morro
dos Prazeres (este, onde se detectou a ocupação romana), em local hoje sobreposto pelas
instalações ferroviárias da gare de Alcântara-Terra.
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Cira Arqueologia, n.º 6, Novembro, 2018 |