sexta-feira, 20 de maio de 2016
António José Forte - POEMA
Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva de uma estrela
alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios
alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar
António José Forte, Uma Faca nos Dentes, Parceria A.M. Pereira/Livraria Editora, Lda., Lisboa, 2003.
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios
alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar
António José Forte, Uma Faca nos Dentes, Parceria A.M. Pereira/Livraria Editora, Lda., Lisboa, 2003.

Algarve - Fotografia
![]() |
Francisco Oliveira | Vista da Praia da Rocha | 1950 |
Investigação sobre fotógrafos de Portimão recupera a memória de um Algarve já distante.
Aqui:
domingo, 15 de maio de 2016
Fernando Pessoa - ÁGUA CORRENTE
Água corrente,
Frescura a fugir —
A uma alma doente,
Tornas inconsciente,
Frescura a fugir —
A uma alma doente,
Tornas inconsciente,
Fazê-la sorrir.
Eu te vejo e ouço
Cantando correr,
E um momento posso
Esquecer o esforço
E o esforço de o ter.
E em minha alma vaga
Frescura também
Me envolve, me alaga,
E, se me embriaga,
É num fresco bem.
Por isso, no olvido
Excepto da água estou
E de um só sentido,
Da vista e do ouvido
Que me furta a quem sou.
Murmúrio da fonte,
Canto da água vão —
Coração insonte
Não tem horizonte...
Dorme, coração!
8 .07.1920
In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005
Eu te vejo e ouço
Cantando correr,
E um momento posso
Esquecer o esforço
E o esforço de o ter.
E em minha alma vaga
Frescura também
Me envolve, me alaga,
E, se me embriaga,
É num fresco bem.
Por isso, no olvido
Excepto da água estou
E de um só sentido,
Da vista e do ouvido
Que me furta a quem sou.
Murmúrio da fonte,
Canto da água vão —
Coração insonte
Não tem horizonte...
Dorme, coração!
8 .07.1920
In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005

terça-feira, 10 de maio de 2016
Bernardo Santareno - Nos Mares do Fim do Mundo
![]() |
fotografia de Bernardo Santareno |
"Foi reeditado "Nos Mares do Fim do Mundo", de Bernardo Santareno (1959), livro sobre o período em que o escritor acompanhou os pescadores bacalhoeiros portugueses pela Terra Nova e Gronelândia."
[...]
"a bordo dos navios David Melgueiro, Senhora do Mar e Gil Eannes,"
[...]
"O volume também traz fotos – registos de despedidas, de embarcações, de rostos, da figura do próprio autor, sempre com óculos de massa, uma das suas imagens de marca. E dois inéditos. O primeiro é um texto sobre o peso da responsabilidade de ter deixado o território protegido dos laboratórios e das clínicas para tratar aqueles que tanto respeitava e o segundo é sobre uma insubordinação em defesa de um direito ocorrido num arrastão. O prenúncio de um posicionamento político que Bernardo Santareno iria aprofundar nos anos seguintes, antes e depois do 25 de Abril de 1974."
Daqui: http://observador.pt/2016/05/08/bernardo-santareno-coracao-nas-trevas/
José Manuel Nilo - As velhas Raposas
["chora"]
[...]
«Esfomeado, nem sequer me lembro de responder à ironia do capitão. Com a concha de alumínio picada pelo tempo encho a malga de esmalte. De início, o aspecto das partes gelatinosas repugna-me um pouco, mas em breve devoro com verdadeiro prazer. Na minha idade, com a boa constituição física e nas circunstâncias do momento, tudo que seja fresco e consistente me sabe bem. Lembro-me da profecia do capitão - hesito em repetir. Mas a necessidade de encher o estômago e o delicioso sabor da "chora"* impélem-me a atascar de novo a malga. E exclamo entre duas colheradas:
- Isto é formidável! Tinham-me dito que era bom... mas não julgava que fosse assim tanto...
O capitão casquinha uma gargalhada:
- Paro o ano estará de volta! Mas deve fazer mais por isso...
Fito o velho, e sùbitamente - num brusco enfraquecimento das minhas íntimas intenções -, perdôo-lhe todas as anteriores ofensas.» [...]
José Manuel Nilo, As Velhas Raposas (finalizado em 1974 - não editado)
*«A "chora" teve origem a bordo dos veleiros da frota bacalhoeira, mais não sendo do que uma sopa que era servida aos pescadores após a dureza do trabalho heróico de pescar, escalar e salgar o bacalhau apanhado diariamente. Dada a compreensível escassez de vegetais e outros alimentos frescos, a Chora era feita quase sempre apenas com arroz ou massa e caras de bacalhau. Também se fazia com os ossos do bacalhau.»
CAMILO PESSANHA - VÉNUS
![]() |
Aquae | Helena Nilo |
I
À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda…
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!
Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, n'um balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.
O seu esboço, na marinha turva…
De pé, flutua, levemente curva,
Ficam-lhe os pés atrás, como voando…
E as ondas lutam como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co'a salsugem.
II
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina …
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira…
Dentinhos que o vaivém desengastara.
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos.
sábado, 7 de maio de 2016
AFONSO LOPES VIEIRA - À SENHORA MARIA LARANJO DA PRAIA DA NAZARÉ
Minha boa Amiga senhora Maria
Laranjo, da praia da Nazaré,
em quem tanto admiro essa fidalguia
de um povo que na Europa o mais fino é,
muito agradecido pelo almoço Real
que aí me deu junto às ondas do mar;
tivera Camões comido um igual,
fazia-lhe versos, mas não a zombar.
Minha boa Amiga, senhora Maria
Laranjo, da praia da Nazaré,
por minha mulher a receberia
(se a minha Amiga quisesse, já se vê)
se acaso a conheço quando era solteiro,
para ser agora, — ventura tamanha —
em vez de pobre doutor, marinheiro,
mendigo do mar, arrais de companha.
Estando da banda dos pobres do mar
já eu não teria, como tenho às vezes,
remorsos tamanhos e tão graves fezes
de ver tantas dores em roda a penar;
assim penaria e acreditaria
como eles, por lindo milagre da fé,
que depois no mar do Paraíso seria
o pescador mais feliz da Nazaré!...
Mas já que eu errei, por destino fatal,
o que era a minha pura, certa vocação,
saiba que em si louvo e admiro Portugal
no que tem de belo — alma e coração.
E saibam as altas senhoras princesas
que há uma fidalga aí na Nazaré
com quem elas podem aprender finezas
e a dar um almoço que tão fino é.
Afonso Lopes Vieira, 'Onde a terra se acaba e o mar começa', Lisboa, Livraria Bertrand, 1940; 2.ª ed., edição de António Manuel Couto Viana, Lisboa, Vega, 1998.
O poema é dedicado à avó materna do pintor Mário Botas.
Laranjo, da praia da Nazaré,
em quem tanto admiro essa fidalguia
de um povo que na Europa o mais fino é,
muito agradecido pelo almoço Real
que aí me deu junto às ondas do mar;
tivera Camões comido um igual,
fazia-lhe versos, mas não a zombar.
Minha boa Amiga, senhora Maria
Laranjo, da praia da Nazaré,
por minha mulher a receberia
(se a minha Amiga quisesse, já se vê)
se acaso a conheço quando era solteiro,
para ser agora, — ventura tamanha —
em vez de pobre doutor, marinheiro,
mendigo do mar, arrais de companha.
Estando da banda dos pobres do mar
já eu não teria, como tenho às vezes,
remorsos tamanhos e tão graves fezes
de ver tantas dores em roda a penar;
assim penaria e acreditaria
como eles, por lindo milagre da fé,
que depois no mar do Paraíso seria
o pescador mais feliz da Nazaré!...
Mas já que eu errei, por destino fatal,
o que era a minha pura, certa vocação,
saiba que em si louvo e admiro Portugal
no que tem de belo — alma e coração.
E saibam as altas senhoras princesas
que há uma fidalga aí na Nazaré
com quem elas podem aprender finezas
e a dar um almoço que tão fino é.
Afonso Lopes Vieira, 'Onde a terra se acaba e o mar começa', Lisboa, Livraria Bertrand, 1940; 2.ª ed., edição de António Manuel Couto Viana, Lisboa, Vega, 1998.
O poema é dedicado à avó materna do pintor Mário Botas.
segunda-feira, 2 de maio de 2016
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