Rio Arade, rio Arade,
Diz a voz da tradição
Que uma moira aqui chorou,
Trazida por Rei Cristão...
Foi em tempos tão remotos,
Em tempos que já lá vão,
Que a luta era mais acesa
Entre a Cruz e o Alcorão...
Era tudo fogo e ferro,
Em chamas ardia o chão,
E, a blasfêmia proclamada,
Carecia de perdão...
E se Cristo alçava a cruz
Aos valentes portugueses,
Allah, de longe, incitava
Os moiros, algumas vezes...
Os dias assim passavam,
Tão negros, sem exagero,
Que nada ali mais se ouvia
Que as vozes do desespero...
Quebravam-se alfanjes moiros,
Duras lanças portuguesas,
Nesses combates hostis,
Pelos montes, por devesas...
E diz a lenda, ela sempre,
Que o sangue que o chão bebia
Numa fonte mais à frente,
Muitas vezes, apar’cia...
É por isso que ainda hoje,
Até por gosto bizarro,
Se apanho terra de
Silves,
É vermelha, cor de barro...
Vamos ao que mais importa
Nesta longa narração:
Saber o que aconteceu
À moita e ao rei cristão...
Era um dia, ao sol poente
Brilhavam núvens nos céus,
E El-Rei das hostes cristãs
Rezava, sózinho, a Deus.
Senão quando, senão quando
Junto de si apar’ceu
Uma visão, a mais linda,
Vinda lá dum outro céu.
Pronto El-Rei ali quedou
A fervorosa oração;
Logo, também, inquiriu:
— “Quem és tu, aparição?...
— “Eu sou
Fhatma, a engeitada;
“Não tenho pai, nem irmãos,
“E assim me dou, pura e virgem,
“Ao forte Rei dos cristãos...
Levou-a El-Rei consigo,
Na garupa do cavalo;
Prestes, dela se tomou,
Não seu Rei, mas seu Vassalo...
E, numa curva do rio,
Num lugar que é Encherim,
Entre flores de laranjeira,
El-Rei lhe falou assim:
— “Tu és flor ou és mulher?...
“És verdade ou tentação?...
“Tu, que és moira, quer’s ficar
“Aqui no meu coração?.,,
Era a moira só ternura,
E sorria como ainda
O guerreiro outra não vira
Sorrir, morena e tão linda...
Mas Fhatma ali respondeu:
— Sou mulher, mas, se me queres,
Sou só tua, apenas tua;
‘Faz de mim quanto quiseres!...
Abraços assim e beijos
Não foram jamais trocados,
Nos tempos vindos depois,
Nem nos tempos já passados...
Porque o amor não era amor,
Era coisa tão sem nome,
Como a água que mata a sede
Ou o pão que mata a fome.
Foi-se El-Rei de novo à guerra
E a princesa, porque o era,
Ficou-se, naquele vale,
Sempre à espera, sempre à espera...
Passaram tempos vindouros,
Longa noite, longo dia,
Mas EI-Rei não mais voltou
Para ver quem não o via...
E a moira que filha fora
Do príncipe Ben Ahr-ade,
Foi-se, a pouco, ali finando,
Só chorando de saudade...
Lágrimas do céu bebia,
Nas longas noites chuvosas,
Para as transformar, depois,
Noutras bem mais copiosas...
Eis, assim, foi engrossando
Aquela magra ribeira,
Onde a moira se quedara,
Mais chorosa, à sua beira...
Os tempos foram passando,
Mas a ribeira era agora
Um rio que ia morrer
Noutras águas, mar em fora...
Logo o vulgo, sempre o vulgo,
Depois, para a eternidade,
Ali mesmo baptizou
O rio, de Rio Arade...
Por isso, nos meus ouvidos,
Em longas noites de v’rão,
Ainda ouço alguém cantar
Aquela estranha canção:
— “Rio Arade, Rio Arade,
“Diz a voz da tradição
“Que uma moira aqui chorou,
“Trazida por Rei Cristão...
LOPES, Morais
Algarve: as Moiras Encantadas
s/l, Edição do Autor, 1995
, p.63-67
Fonte