terça-feira, 27 de dezembro de 2011
sábado, 24 de dezembro de 2011
Cepo de Natal |
VIII - Num meio-dia de fim de Primavera
Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas —
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido.» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
……
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
……
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
……
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Alberto Caeiro
Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas —
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido.» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
……
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
……
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
……
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Alberto Caeiro
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Bucho Raiano – O Melhor Prato do Mundo*
Manuel Leal Freire, distinto escritor natural da Bismula, concelho do Sabugal, tem-se empenhado na defesa da gastronomia tradicional portuguesa, sendo membro de várias confrarias gastronómicas.
A sua primeira confraria é a do Queijo Serra da Estrela, da qual foi fundador e é Grão-Mestre, mas é também presidente do conselho fiscal da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas, sendo além disso sócio de honra da Confraria do Bucho Raiano do Sabugal.
Dando nota do valor do bucho raiano, que considera «o melhor prato do mundo», Manuel Leal Freire publicou no nº.19 da revista «Gastronomias» (edição de Junho de 2011), dois sonetos dedicados ao bucho e à sua confraria, que aqui transcrevemos com a devida vénia.
A sua primeira confraria é a do Queijo Serra da Estrela, da qual foi fundador e é Grão-Mestre, mas é também presidente do conselho fiscal da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas, sendo além disso sócio de honra da Confraria do Bucho Raiano do Sabugal.
Dando nota do valor do bucho raiano, que considera «o melhor prato do mundo», Manuel Leal Freire publicou no nº.19 da revista «Gastronomias» (edição de Junho de 2011), dois sonetos dedicados ao bucho e à sua confraria, que aqui transcrevemos com a devida vénia.
Sabores da mais rara qualidade
A que o tempo deu superno cunho
Atingiram no bucho a sumidade
De que a Confraria é testemunho
Qualquer um de nós pelo seu punho
O atesta escrivão da puridade
Perfeita assinatura e não rascunho
Que para sempre obrigar-nos há-de.
Que outros cantem hinos, carmes, loas
Gastem, horas de sexta, véspera e noas
Rendidos aos seus sabores, é natural.
Mas nós de nossas coisas sempre ufanos
Elegemos como Ambrósia dos raianos
O bucho que se serve em Sabugal.
De onde advirá todo este gosto
Que corpo e alma tanto nos deleita
Tão entranhado em nós que é pressuposto
De uma interacção quase perfeita.
Antiga, muito antiga é a receita,
Perene, em seus segredos, o composto
O fumo, a carne, o dedo que a confeita
O alho e colorau, em contragosto.
Os Deuses no Olimpo luminoso
Criaram um sabor suprafamoso
Que Homero eternizou, de nome Ambrósia
Porém, se o nosso bucho aos sete céus
Chegara um dia, então diria Zeus
Que tudo ali ao bucho é simples sósia
Manuel Leal Freire - AQUI
*[para mim é um pouco como a história das toradas]
O valor dos nossos vinhos
Domingo, 12 Junho, 2011
Se fossemos um povo de bons comerciantes, Portugal poderia viver só com o produto das exportações de vinhos e derivados ou, mais abrangentemente, ainda de tudo o que a videira pode gerar de Melgaço ao Pico, afora as zonas de grande altitude, área aliás insignificante no contexto geral, não há nesga de terra que não tenha aptidão para a cultura da vinha.
Por força da multiplicidade das minhas andanças já bebi não um copo, mas meia dúzia deles em quintas e vilares de mais de meio reino.
Um pouco exageradamente ou talvez não, costumo afirmar que não há município onde não resida pelo menos um meu antigo aluno e onde eu não tenha apanhado pelo menos uma bebedeira… Penso que sem prejuízo para a saúde física e a acuidade mental de que, passada de há muito, a casa dos oitenta, graças a Deus ainda gozo.
Possivelmente, porque só me tenho emborrachado em dias de festa, abstendo-me no quotidiano, de acordo com a regra usada no posto de carabineiros de Alamedilha del Chozo, ou de Lazaba, que, nos meus tempos de sirga muito frequentei e que manda assim comer y beber, hasta rebentar…después, ayunar…
Invocando o adágio, lembro também as loas que o cabo Canário e o alferes Rosales, ambos veteranos da guerra civil espanhola e por essência bons adoradores de baco, teciam ao vinho, à geropiga e à bagaceira com que meu pai os mimoseava. Ao contrário de mim, um fenómeno de inabilidade manual e de impaciência para esperas, meu pai, era capaz de ficar dois dias seguidos doseando a temperatura de uma alquitarra … E daí a qualidade do produto, tanto mais realçada por los civiles, quanto é certo que na raia espanhola era proibido fazer aguardente, sendo a balsa usada como estrume. Mas eles tinham fartura de domeqes, a que, no entanto, preferiam a nossa bagaceira. Geropiga, consideravam-na bebida para damas e donzelas. E quanto a vinho meu pai tratava amorosamente de uma courela abacelada, a que chamávamos Vinha da Porta.
E num tempo em que a totalidade dos íncolas juntavam castas e só esporadicamente apartava o branco do tinto, já seleccionava castas. O espadal, feito á base de ferral, tâmara e um palhete mistura de malvasia e moscatel torrado, arrancavam olés na guarnição, o que mais nos admirará lembrando que o alferes era da terra do Vega Cecilia e de família abastada e o Canário devia o nome á toponímia.
Agora, passarei a falar da minha experiência diaspórica, que começou por Castelo Branco. Aí tive a sorte de gozar da amizade de dois fidalgos – o Visconde de Tinalhas e o Marquês da Graciosa – o primeiro licenciado em Direito e de nome José Meireles Coutinho Barriga e o segundo engenheiro agrónomo e cujo nome de baptismo abrevio para Fernando Afonso de Melo Geraldes Sampaio Pereira de Figueiredo. O Visconde, ao tempo, já andava na casa dos setenta e o seu prazer era beber com um amigo uma das centenas de garrafas que seu pai enchera por ocasião do seu nascimento. O Marquês, esse revia-se num palheto da sua propriedade situada nos cabeços de Monsanto, a aldeia mais portuguesa… Mas nem Tinalhas, nem as Idanhas faziam ou fazem parte de roteiros vínicos.
Evoco ainda dois outros fidalgos da região, proverbiais pela aversão ao uísque. Um combatera ao lado de Mousinho, outro era germanófilo, ambos davam jantares de vinte pratos A quem pedisse aquele símbolo do império britânico arriscava expulsão. Álcoois só dos seus vinhedos, sendo certo que ambos já achampanhavam tintos e brancos das encostas da Gardunha, Alvelos e Moradal.
Mais tarde, passei a frequentar casas minhotas, e em todas elas achei verdes esplêndidos, mesmo os de puro enforcado. Entre os braços do ulmeiro, está a jucunda vide…
Há em frente ao meu quarto, um roble, uma floresta…, com uma vide enlaçado.
O roble enche um celeiro – a vide enche um lagar.
Mas também a vide faz braseal. E uma rez de leite – borrego ou cabrito – tem outro sabor assado sobre um feixe delas. Experimentem.
Experimentem também fazer doces com arrobe, que é o mosto tornado melaço pela fervura. E bebam homens e senhoras, lembrando o pranto da Maria Parda ou a quadra:
Mais vinho que é sangue virgem
Mais vinho que pago eu
Se o vinho leva ao inferno
Primeiro nos mostra o Céu.
Manuel Leal Freire
Capeia Raiana AQUI
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
Pitos de Santa Luzia
Neste dia de Santa Luzia, em Vila Real, manda a tradição que as raparigas da cidade ofereçam o pito aos rapazes seus eleitos, para que no dia 3 de Fevereiro, dedicado, na liturgia, a São Brás, os rapazes, retribuam a oferta com a gancha.
Para que não haja confusões, convém referir, que o pito é um bolo com recheio de doce de calondro e a gancha um rebuçado em forma de báculo bispal.
A tradição, a lenda e a receita encontram-se, por exemplo, AQUI
Feira de Santa Luzia ou Feira dos Sardões e das Passarinhas - Guimarães
bandeja usada nos rituais a Santa Luzia |
Conhecida outrora pelo grande comércio de frutos, sobretudo pela castanha (hoje a aparecer pouco), pode dizer-se que a fama da feira assentou, desde sempre, no típicos «sardões» e «passarinhas» - doces tradicionais desta romaria, feitos de massa doce e escura, revestidos com uma camada branca de açucar, enfeitados com papel de cor.
Os sardões são oferecidos pelos rapazes às raparigas e as passarinhas são oferecidas pelas raparigas aos rapazes.
Outra tradição da festa, conservada até aos nossos dias, prende-se com os chamados «segredos», igualmente à venda nas bancas dos doces, a manter idêntica procura. Trata-se de pequenas caixas de cartão (pouco maiores que uma caixa de fósforos), vistosamente forradas, contendo no interior, sobre algodão, três miniaturas: um sardão, uma passarinha e um coração trespassado por um papelinho, onde pode ler-se uma dedicatória, quase sempre de teor moroso.
Os «segredos» (não comestíveis) continuam a ser oferecidos pelos rapazes às raparigas, conforme manda a praxe
sardões e passarinhas |
banca dos doces |
Barros, Jorge e Soledade Martinho Costa (2002), Festas e Tradições Populares: Novembro e Dezembro. Lisboa: Círculo de Leitores.
Santa Luzia - dia 13 e Dezembro
Pendão de Santa Luzia. Ruilhe, Braga |
(Cantares populares a Santa Luzia - Fundão)
Senhora Santa Luzia,
Tendes o pinheiro à porta;
Dá-me uma polinha dele
Para pôr na minha horta.
Senhora Santa Luzia,
Acudi a quem vos chama,
Acudi ao meu amor,
Que está doente na cama.
Senhora Santa Luzia,
Cá vos fica o meu cordão,
Fica muito bem entregue,
Senhora, na vossa mão.
Pedrinhas desta calçada
Levantai-vos e dizei
Quem vos passeia de noite
Eu de dia bem o sei
O Sol se esconde, brilha o luar,
A noite é bela só p'ra te amar.
O Sol se esconde, brilha o luar,
Olha a barquinha que anda no mar.
[Olha a barquinha que anda no mar.]
...
[adaptado: - foi assim que a aprendi. Cantavam-se à volta da fogueira, à beira-rio, enquanto se bebia vinho e se comia a bola acabada de sair do forno da padaria.]
domingo, 11 de dezembro de 2011
Ballada do Caixão
O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte:
Ponteia e coze, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de velludo
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vae a aborrecer,
Fui-me lá, hontem: (era Entrudo,
Havia immenso que fazer!...)
- Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva? - Vamos ver...
Olhou, mexeu na caza toda...
- Eis aqui um e bem barato.
- Está na moda? - Está na moda.
(Gostei e nem quiz apreçal-o:
Muito justinho, pouca roda...)
- Quando posso mandar buscal-o?
- Ao por-do-sol. Vou dal-o a ferro:
(Poz-se o bom homem a aplainal-o...)
Ó meus amigos! salvo-erro,
Juro-o pela alma, pelo céu!
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dandy, olhae! do que eu!
António Nobre, Só
sábado, 10 de dezembro de 2011
Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia
Eu hontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino,
Do seu fado...
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.
Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...
Elle afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...
Ao longe o Sol na agonia
De rôxo as aguas tingia.
«Voz do mar, mysteriosa;
Voz do amôr e da verdade!
- Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»
. . . . . . . . . . . . . . . .
E os poetas a cantar
São echos da voz do mar!
António Botto, Canções
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
Eugénio de Andrade - Poema à Mãe
Jornal de Notícias, Terça-feira, 14 de Junho de 2005 |
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Bairro Grandella
fotografias - AQUI
Junto à Estrada de Benfica, abrangendo as Ruas de Sta. Matilde, do Dr. Gregório, R. Fernandes e a Av. dos Empregados dos Armazéns do Grandella.
Freguesia / Concelho / Distrito
S. Domingos de Benfica / Lisboa / Lisboa
Função
Habitação operária
Época
Século XX, construído entre 1905-1907
Caracterização
O bairro operário foi construído por Francisco de Almeida Grandella, tendo como objectivo a criação de habitação para os operários da sua fábrica de malhas e tecidos (c. de 1889), localizada em S. Domingos de Benfica.
A edificação deste apoio social integra-se na filosofia filantrópica defendida e praticada por Grandella. O bairro construiu-se em terrenos anexos à fábrica, desenvolvendo a fachada principal para a Estrada de Benfica. Assim, o modelo apresentado por estas habitações integra-se na tipologia das vilas ou bairros operários, destacando-se a organização em ruas internas, delimitação por gradeamento do espaço habitacional, implantação em banda com módulos habitacionais repetidos, formando uma uniformidade e um ritmo próprio.
O conjunto é composto por setenta habitações, pagas de acordo como o salário auferido na unidade industrial. No entanto, o bairro impõe-se à via pública através de duas construções neo-clássicas onde foram instaladas a escola e creche para os filhos dos operários, desenvolvendo-se para o interior o espaço habitacional. Na sequência do bairro para os operários construíram-se também duas bandas para os empregados dos armazéns Grandella, subsistindo actualmente uma, revelando um maior cuidado estético.
AQUI
*******
VILAS DE ESCALA URBANA
No tipo mais corrente de vila, esta organiza-se em função de um espaço comum, de carácter privado, fora das vistas da rua, raramente atingindo um elevado volume de construção. Mas com o desenvolvimento desta modalidade de alojamento foi-se diversificando a respectiva tipologia — cada vez mais afastada do primitivo pátio —, ao mesmo tempo que o sucesso de anteriores realizações ia estimulando investimentos mais volumosos.
No tipo mais corrente de vila, esta organiza-se em função de um espaço comum, de carácter privado, fora das vistas da rua, raramente atingindo um elevado volume de construção. Mas com o desenvolvimento desta modalidade de alojamento foi-se diversificando a respectiva tipologia — cada vez mais afastada do primitivo pátio —, ao mesmo tempo que o sucesso de anteriores realizações ia estimulando investimentos mais volumosos.
É no quadro desta evolução que surgem vilas que, pelo volume da edificação ou pela complexidade da sua estrutura, atingem uma escala que as impõe ao nível do espaço da cidade, constituindo neste último caso um sistema viário que, sem perder o carácter segregador, ganha uma dimensão urbana. É assim que surgem verdadeiras unidades de habitação horizontal, como o Bairro Estrela de Ouro, ou conjuntos massivos de blocos em altura, como o Bairro Clemente Vicente.
A dimensão destas realizações e o seu cuidadoso planeamento, em articulação com o carácter de autonomia que sempre guardam, conduzem frequentemente à inclusão de elementos de equipamento colectivo nestes conjuntos. Trata-se geralmente de estabelecimentos comerciais de primeira necessidade, mas aparecem também escolas, espaços de convívio e, na Vila Cândida, até uma esquadra da PSP.
As entidades construtoras eram, em muitos casos, empresas industriais e, noutros, simples promotores imobiliários que permaneceram como senhorios.Mas a individualização desses promotores, em qualquer dos casos, é um elemento característico deste tipo de alojamento. Essa individualização traduz-se geralmente na própria designação da vila, por vezes representada alegoricamente em placas ou painéis de azulejo. Esta espécie de culto está, provavelmente, ligada à faceta filantrópica que por vezes caracterizava estes empreendimentos: os promotores eram capitalistas que investiam em prol do bem-estar dos seus empregados. E, em alguns casos, este sentido paternalista e tão forte que levava os proprietários a construírem no mesmo terreno, embora com a necessária separação, a sua própria residência.
Têm estas características o Bairro Grandella, o Bairro Estrela de Ouro, a Vila Cândida e O Bairro Clemente Vicente, como exemplares mais interessantes desta tipologia.
O Bairro Grandella, em Benfica, foi edificado junto de uma fábrica têxtil da empresa e denota uma concepção estrutural de arruamentos paralelos com vários tipos de habitação, destinados a diferentes escalões do pessoal. Com frente para a estrada de Benfica, o bairro é rematado por dois pavilhões, lembrando templos gregos, com colunas e frontões de coroamento, destinados a uso comum. A grade circundante foi retirada há alguns anos. Francisco de Almeida Grandella era um empresário progressista, que construiu outras obras de finalidades sociais.
O Bairro Estrela de Ouro, na Graça, foi construído em 1908 pelo industrial de confeitaria Agapito Serra Fernandes e integra vários arruamentos a que deu o nome de pessoas da sua família. Formado por pequenas unidades habitacionais em forma de U, a estrela de cinco pontas aparece como elemento decorativo sistemático.
A Vila Cândida, à Avenida General Roçadas, constitui como que uma aldeia, com traçado geométrico e um amplo largo de entrada, onde se situavam os edifícios sociais. Construída pelo banqueiro Cândido Sotto Mayor, é o exemplo típico de uma atitude filantrópica e paternalista. Após o 25 de Abril, as casas vieram a ficar na posse dos moradores, pelo que tem vindo a destruir-se a unidade de todo o conjunto.
O Bairro Clemente Vicente, no Dafundo, é constituído por três blocos compactos de cinco pisos, totalizando 240 fogos. Foi construído por um empresário empreendedor nos anos 20 e procurou dar, provavelmente, uma imagem do falanstério. Os acessos fazem-se por uma complicada estrutura metálica de escadas e varandas.
As entidades construtoras eram, em muitos casos, empresas industriais e, noutros, simples promotores imobiliários que permaneceram como senhorios.Mas a individualização desses promotores, em qualquer dos casos, é um elemento característico deste tipo de alojamento. Essa individualização traduz-se geralmente na própria designação da vila, por vezes representada alegoricamente em placas ou painéis de azulejo. Esta espécie de culto está, provavelmente, ligada à faceta filantrópica que por vezes caracterizava estes empreendimentos: os promotores eram capitalistas que investiam em prol do bem-estar dos seus empregados. E, em alguns casos, este sentido paternalista e tão forte que levava os proprietários a construírem no mesmo terreno, embora com a necessária separação, a sua própria residência.
Têm estas características o Bairro Grandella, o Bairro Estrela de Ouro, a Vila Cândida e O Bairro Clemente Vicente, como exemplares mais interessantes desta tipologia.
O Bairro Grandella, em Benfica, foi edificado junto de uma fábrica têxtil da empresa e denota uma concepção estrutural de arruamentos paralelos com vários tipos de habitação, destinados a diferentes escalões do pessoal. Com frente para a estrada de Benfica, o bairro é rematado por dois pavilhões, lembrando templos gregos, com colunas e frontões de coroamento, destinados a uso comum. A grade circundante foi retirada há alguns anos. Francisco de Almeida Grandella era um empresário progressista, que construiu outras obras de finalidades sociais.
O Bairro Estrela de Ouro, na Graça, foi construído em 1908 pelo industrial de confeitaria Agapito Serra Fernandes e integra vários arruamentos a que deu o nome de pessoas da sua família. Formado por pequenas unidades habitacionais em forma de U, a estrela de cinco pontas aparece como elemento decorativo sistemático.
A Vila Cândida, à Avenida General Roçadas, constitui como que uma aldeia, com traçado geométrico e um amplo largo de entrada, onde se situavam os edifícios sociais. Construída pelo banqueiro Cândido Sotto Mayor, é o exemplo típico de uma atitude filantrópica e paternalista. Após o 25 de Abril, as casas vieram a ficar na posse dos moradores, pelo que tem vindo a destruir-se a unidade de todo o conjunto.
O Bairro Clemente Vicente, no Dafundo, é constituído por três blocos compactos de cinco pisos, totalizando 240 fogos. Foi construído por um empresário empreendedor nos anos 20 e procurou dar, provavelmente, uma imagem do falanstério. Os acessos fazem-se por uma complicada estrutura metálica de escadas e varandas.
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Historial
Este bairro operário tem uma frente superior a 80m, virada para a Estrada de Benfica, com duas fachadas em forma de pórticos neoclássicos, que rematam dois quarteirões com cerca de 90m de profundidade. As ruas exteriores destinavam-se às famílias dos empregados dos escalões mais baixos, enquanto que o acesso aos fogos dos empregados dos escalões mais elevados era feito a partir da rua central.
Esta configuração urbana assenta em memórias materiais e espirituais integradas no ideário de socialismo utópico, pela preocupação evidente com o bem-estar dos empregados. Incorpora também expressões de cariz maçónico, como bem expressam as fachadas, quer por símbolos, quer nomeadamente pelo lema -- Sempre por Bom Caminho e Segue" --. Também por isso, o conjunto, apesar de ter sofrido, ao longo do tempo, alguma descaracterização em relação ao projecto inicial, foi classificado, em 1984, como Imóvel de Interesse Público.
AQUI
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Ainda neste bairro:AQUI
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domingo, 4 de dezembro de 2011
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