Se fossemos um povo de bons comerciantes, Portugal poderia viver só com o produto das exportações de vinhos e derivados ou, mais abrangentemente, ainda de tudo o que a videira pode gerar de Melgaço ao Pico, afora as zonas de grande altitude, área aliás insignificante no contexto geral, não há nesga de terra que não tenha aptidão para a cultura da vinha.
Por força da multiplicidade das minhas andanças já bebi não um copo, mas meia dúzia deles em quintas e vilares de mais de meio reino.
Um pouco exageradamente ou talvez não, costumo afirmar que não há município onde não resida pelo menos um meu antigo aluno e onde eu não tenha apanhado pelo menos uma bebedeira… Penso que sem prejuízo para a saúde física e a acuidade mental de que, passada de há muito, a casa dos oitenta, graças a Deus ainda gozo.
Possivelmente, porque só me tenho emborrachado em dias de festa, abstendo-me no quotidiano, de acordo com a regra usada no posto de carabineiros de Alamedilha del Chozo, ou de Lazaba, que, nos meus tempos de sirga muito frequentei e que manda assim comer y beber, hasta rebentar…después, ayunar…
Invocando o adágio, lembro também as loas que o cabo Canário e o alferes Rosales, ambos veteranos da guerra civil espanhola e por essência bons adoradores de baco, teciam ao vinho, à geropiga e à bagaceira com que meu pai os mimoseava. Ao contrário de mim, um fenómeno de inabilidade manual e de impaciência para esperas, meu pai, era capaz de ficar dois dias seguidos doseando a temperatura de uma alquitarra … E daí a qualidade do produto, tanto mais realçada por los civiles, quanto é certo que na raia espanhola era proibido fazer aguardente, sendo a balsa usada como estrume. Mas eles tinham fartura de domeqes, a que, no entanto, preferiam a nossa bagaceira. Geropiga, consideravam-na bebida para damas e donzelas. E quanto a vinho meu pai tratava amorosamente de uma courela abacelada, a que chamávamos Vinha da Porta.
E num tempo em que a totalidade dos íncolas juntavam castas e só esporadicamente apartava o branco do tinto, já seleccionava castas. O espadal, feito á base de ferral, tâmara e um palhete mistura de malvasia e moscatel torrado, arrancavam olés na guarnição, o que mais nos admirará lembrando que o alferes era da terra do Vega Cecilia e de família abastada e o Canário devia o nome á toponímia.
Agora, passarei a falar da minha experiência diaspórica, que começou por Castelo Branco. Aí tive a sorte de gozar da amizade de dois fidalgos – o Visconde de Tinalhas e o Marquês da Graciosa – o primeiro licenciado em Direito e de nome José Meireles Coutinho Barriga e o segundo engenheiro agrónomo e cujo nome de baptismo abrevio para Fernando Afonso de Melo Geraldes Sampaio Pereira de Figueiredo. O Visconde, ao tempo, já andava na casa dos setenta e o seu prazer era beber com um amigo uma das centenas de garrafas que seu pai enchera por ocasião do seu nascimento. O Marquês, esse revia-se num palheto da sua propriedade situada nos cabeços de Monsanto, a aldeia mais portuguesa… Mas nem Tinalhas, nem as Idanhas faziam ou fazem parte de roteiros vínicos.
Evoco ainda dois outros fidalgos da região, proverbiais pela aversão ao uísque. Um combatera ao lado de Mousinho, outro era germanófilo, ambos davam jantares de vinte pratos A quem pedisse aquele símbolo do império britânico arriscava expulsão. Álcoois só dos seus vinhedos, sendo certo que ambos já achampanhavam tintos e brancos das encostas da Gardunha, Alvelos e Moradal.
Mais tarde, passei a frequentar casas minhotas, e em todas elas achei verdes esplêndidos, mesmo os de puro enforcado. Entre os braços do ulmeiro, está a jucunda vide…
Há em frente ao meu quarto, um roble, uma floresta…, com uma vide enlaçado.
O roble enche um celeiro – a vide enche um lagar.
Mas também a vide faz braseal. E uma rez de leite – borrego ou cabrito – tem outro sabor assado sobre um feixe delas. Experimentem.
Experimentem também fazer doces com arrobe, que é o mosto tornado melaço pela fervura. E bebam homens e senhoras, lembrando o pranto da Maria Parda ou a quadra:
Mais vinho que é sangue virgem
Mais vinho que pago eu
Se o vinho leva ao inferno
Primeiro nos mostra o Céu.
Manuel Leal Freire
Capeia Raiana AQUI
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