HÁ QUE TEMPOS!...
Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado... Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão: viu cair por terra todos os seus sonhos – e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo! A realidade temerosa afastou-a sempre de si. Venceu-a. Deu-nos vida a todos. Alimentou-nos do mesmo sonho que a devorou até final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Foi dela que herdei a sensibilidade e o amor pelas árvores, pela água, e dela herdei também o sonho... Bastava que a bica do quintal- deitasse menos para minha mãe adoecer. Ficava horas a olhar, extasiada, o pouco de musgo humedecido, donde escorria, vindo da escuridão, com um hálito de frescura, o fio azul infatigável, que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas líquidas que logo subiam à superfície reluzindo em bolhas iluminadas. Às vezes íamos vê-la brotar no fundo da mina, e ansiosos e calados assistíamos na escuridão ao nascer misterioso da água borbulhando na madre e escorrendo logo pela caleira de pedra. Quando mais tarde minei o monte, fi-lo com a mesma ansiedade. Ver na terra sequiosa e inútil escorrerem as primeiras gotas que lhe dão vida e a transformam é um dos espectáculos mais lindos que conheço. É criar.
De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo, desde o jorro de Inverno que transborda ao fio de Setembro, deitado com aflição. Em Agosto secam os montes, em Setembro secam as fontes.
– Se secasse!...
De noite punha o ouvido à escuta – como me acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz é extraordinária de frescura e pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira – nem a das folhas, nem a do vento –, nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tomàs vezes, e por momentos, emudece. Secou! E lá torna a correr...
Plantou árvores até aos últimos dias – como eu as planto. E, já prostrada, mantinha de pé a ilusão. e teimava em sonhar – como eu sonho até ao fim da vida. Foi tal o frenesi, o encanto, as lágrimas, que ainda hoje vivo da vida de minha mãe. Às vezes sonhávamos juntos. Sentava-me ao pé dela e era capaz de estar assim horas perdidas. Ou, tendo corrido pelo quintal numa exaltação, ia direito ao alegrete e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Ela não me dizia palavra nem me estranhava sequer – talvez porque visse em mim reproduzida a mesma sensibilidade exagerada; só me passava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho... A lua aparecia atrás dos montes, sobre a mais bela paisagem do Mundo porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.
Há imagens tão delicadas no fundo do meu ser, que tenho medo que desapareçam tocando-lhes. Apagaram-se pouco e pouco. Melhor: transformaram-se pouco e pouco, mais desvanecidas e mais lindas, num fundo de auréola como certas figuras dos livros. Sinto-a doirada. Pura e doirada. Toda a matéria desapareceu, reduzida a fios de aranha. Ficou uma luz – sentimento que liga as suas raízes às minhas raízes.É quase nada e faz parte da essência da minha alma.
O meu sonho está preso por um fio ténue e indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Só uma única coisa se me conservou intacta na memória – o seu olhar. Talvez porque o amor nunca mais se apaga – talvez porque a luz seja a única realidade do mundo – o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade e o mesmo amor.
Foi ela quem me falou pela primeira vez naquele pobre que costuma entrar pela porta dos desgraçados dentro, quando menos se espera, e se senta ao pé do lume: – Assim andava o Senhor pelo mundo!... –E eu fugia para o fundo do quintal, para sonhar com Ele. Nunca mais deixei de amar a solidão nem de ver esse pobre extraordinário que me tem acompanhado até à velhice.
Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente – e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, que lá está todas as noites sentada ao pé da bica. Não a separo desse fio, que a lua toca por momentos com o seu dedo molhado de branco – e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto aos que sabem amar...
A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada. Era um tipo popular, de energia admirável. Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos dum azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz Velha. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar. Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é que era a expressão mais intima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça. Infatigável e risonha – o riso sempre pronto no trabalho e na dor. Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente, depois de nos servir a vida inteira. A Mari’Enlília era já uma pessoa da família. Raro saía.. As mulheres do seu tempo estavam habituadas à reclusão e só saíam para a missa de capote e coca. A bem dizer-se, a vida conventual estendia-se até cá fora: em todos os quartos de dormir havia um oratório, de castanho ou pau-santo onde dia e noite ardia a lamparina. O da Mari’Emília era tão lindo como a sua alma: o Jesus crucificado sobressaia do fundo de papel azul com estrelinhas doiradas, entre o Bom e o Mau Ladrão. Também lá se via, um pouco a frente, o Menino pela mão de Maria e de José – e, muito maior, outro personagem principal, entre duas velas de cera, Santo António, o santo da sua devoção, que lhe servia de medianeiro quando queria obter os favores celestiais. Do quarto ao lado, onde eu dormia, ouvia-a todas as noites rezar. Ouvia-a com espanto. Era um diálogo cheio de familiaridade com Santo António – era uma coisa pueril que fazia chegar as lágrimas aos olhos. Ela não só lhe pedia – ralhava com ele como ralhava comigo, com autoridade e ternura.
– Tu ouves?... – Silêncio. – Tu ouves?... Tu não me queres ouvir!...– Outro silêncio (naturalmente ele respondia-lhe). – Então eu peço e tu não me ouves?! Tinha-te prometido umas velas de arrátel, mas já não te dou, meu maroto, senão umas de quarta!
E aquilo seguia, durante muito tempo, no mesmo tom, com exclamações e rogos, até eu adormecer...Ao fim de tantos anos de familiaridade, tinham chegado a tratar-se como velhos amigos.
Nos últimos anos, a Mari’Emília já não podia trabalhar, mas fazia, de manhã à noite, as meias de fio branco que meu pai usou até à morte – contando-nos histórias intermináveis. Aprendi com a Mari’Emília coisas extraordinárias – a religião, no que ela tem de mais vivo – o veio que passa escondido de alma para alma do povo e a piedade pelos humildes. Vi Jesus. Vi Jesus menino, a quem não é preciso mudar de túnica porque a túnica cresce naturalmente com Ele; vi-O fazendo pássaros de barro e soprando-lhes para eles voarem. Vi-O, depois, à porta do rico soberbo que O repele – vi-O sobretudo aparecer nas horas em que se sofre e se espera. Esta religião viva e escondida, esta ânsia do pobre – esta aspiração que não morre para uma vida mais perfeita e mais bela, transmitiu-me uma criada velha e humilde – que tenho sempre diante de mim mancle-mancle, a sorrir- -me com os olhos azuis já turvos pelos anos. E com ela quero viver e morrer.
Que é que nós lhe demos para assim nos amar? Sofrimento, trabalho até cair exausta de dedicação. E ela deu-nos à vida a alegria. Mancou e riu até ao fim. Nenhuma desgraça pôde com ela.Resistiu sempre. Serviu e amou. E no fim morreu ainda servindo-nos e com estas palavras na boca: – Levo-vos no coração!