terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Oração ao deitar - Serra da Estrela
«Com Deus me deito
Com Deus me levanto
Com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo.
Com três anjos aos pés
e quatro à cabeceira,
e Nossa Senhora na dianteira.
Se eu dormir embalai-me
Se eu morrer, acompanhai-me»
in: Pinharanda Gomes, "Piedade Eclesial, Piedade Popular", Separata de LAIKOS, Lisboa, 1980
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Raúl Brandão - Memórias (vol.III)
HÁ QUE TEMPOS!...
Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado... Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão: viu cair por terra todos os seus sonhos – e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo! A realidade temerosa afastou-a sempre de si. Venceu-a. Deu-nos vida a todos. Alimentou-nos do mesmo sonho que a devorou até final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Foi dela que herdei a sensibilidade e o amor pelas árvores, pela água, e dela herdei também o sonho... Bastava que a bica do quintal- deitasse menos para minha mãe adoecer. Ficava horas a olhar, extasiada, o pouco de musgo humedecido, donde escorria, vindo da escuridão, com um hálito de frescura, o fio azul infatigável, que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas líquidas que logo subiam à superfície reluzindo em bolhas iluminadas. Às vezes íamos vê-la brotar no fundo da mina, e ansiosos e calados assistíamos na escuridão ao nascer misterioso da água borbulhando na madre e escorrendo logo pela caleira de pedra. Quando mais tarde minei o monte, fi-lo com a mesma ansiedade. Ver na terra sequiosa e inútil escorrerem as primeiras gotas que lhe dão vida e a transformam é um dos espectáculos mais lindos que conheço. É criar.
De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo, desde o jorro de Inverno que transborda ao fio de Setembro, deitado com aflição. Em Agosto secam os montes, em Setembro secam as fontes.
– Se secasse!...
De noite punha o ouvido à escuta – como me acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz é extraordinária de frescura e pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira – nem a das folhas, nem a do vento –, nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tomàs vezes, e por momentos, emudece. Secou! E lá torna a correr...
Plantou árvores até aos últimos dias – como eu as planto. E, já prostrada, mantinha de pé a ilusão. e teimava em sonhar – como eu sonho até ao fim da vida. Foi tal o frenesi, o encanto, as lágrimas, que ainda hoje vivo da vida de minha mãe. Às vezes sonhávamos juntos. Sentava-me ao pé dela e era capaz de estar assim horas perdidas. Ou, tendo corrido pelo quintal numa exaltação, ia direito ao alegrete e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Ela não me dizia palavra nem me estranhava sequer – talvez porque visse em mim reproduzida a mesma sensibilidade exagerada; só me passava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho... A lua aparecia atrás dos montes, sobre a mais bela paisagem do Mundo porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.
Há imagens tão delicadas no fundo do meu ser, que tenho medo que desapareçam tocando-lhes. Apagaram-se pouco e pouco. Melhor: transformaram-se pouco e pouco, mais desvanecidas e mais lindas, num fundo de auréola como certas figuras dos livros. Sinto-a doirada. Pura e doirada. Toda a matéria desapareceu, reduzida a fios de aranha. Ficou uma luz – sentimento que liga as suas raízes às minhas raízes.É quase nada e faz parte da essência da minha alma.
O meu sonho está preso por um fio ténue e indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Só uma única coisa se me conservou intacta na memória – o seu olhar. Talvez porque o amor nunca mais se apaga – talvez porque a luz seja a única realidade do mundo – o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade e o mesmo amor.
Foi ela quem me falou pela primeira vez naquele pobre que costuma entrar pela porta dos desgraçados dentro, quando menos se espera, e se senta ao pé do lume: – Assim andava o Senhor pelo mundo!... –E eu fugia para o fundo do quintal, para sonhar com Ele. Nunca mais deixei de amar a solidão nem de ver esse pobre extraordinário que me tem acompanhado até à velhice.
Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente – e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, que lá está todas as noites sentada ao pé da bica. Não a separo desse fio, que a lua toca por momentos com o seu dedo molhado de branco – e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto aos que sabem amar...
A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada. Era um tipo popular, de energia admirável. Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos dum azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz Velha. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar. Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é que era a expressão mais intima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça. Infatigável e risonha – o riso sempre pronto no trabalho e na dor. Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente, depois de nos servir a vida inteira. A Mari’Enlília era já uma pessoa da família. Raro saía.. As mulheres do seu tempo estavam habituadas à reclusão e só saíam para a missa de capote e coca. A bem dizer-se, a vida conventual estendia-se até cá fora: em todos os quartos de dormir havia um oratório, de castanho ou pau-santo onde dia e noite ardia a lamparina. O da Mari’Emília era tão lindo como a sua alma: o Jesus crucificado sobressaia do fundo de papel azul com estrelinhas doiradas, entre o Bom e o Mau Ladrão. Também lá se via, um pouco a frente, o Menino pela mão de Maria e de José – e, muito maior, outro personagem principal, entre duas velas de cera, Santo António, o santo da sua devoção, que lhe servia de medianeiro quando queria obter os favores celestiais. Do quarto ao lado, onde eu dormia, ouvia-a todas as noites rezar. Ouvia-a com espanto. Era um diálogo cheio de familiaridade com Santo António – era uma coisa pueril que fazia chegar as lágrimas aos olhos. Ela não só lhe pedia – ralhava com ele como ralhava comigo, com autoridade e ternura.
– Tu ouves?... – Silêncio. – Tu ouves?... Tu não me queres ouvir!...– Outro silêncio (naturalmente ele respondia-lhe). – Então eu peço e tu não me ouves?! Tinha-te prometido umas velas de arrátel, mas já não te dou, meu maroto, senão umas de quarta!
E aquilo seguia, durante muito tempo, no mesmo tom, com exclamações e rogos, até eu adormecer...Ao fim de tantos anos de familiaridade, tinham chegado a tratar-se como velhos amigos.
Nos últimos anos, a Mari’Emília já não podia trabalhar, mas fazia, de manhã à noite, as meias de fio branco que meu pai usou até à morte – contando-nos histórias intermináveis. Aprendi com a Mari’Emília coisas extraordinárias – a religião, no que ela tem de mais vivo – o veio que passa escondido de alma para alma do povo e a piedade pelos humildes. Vi Jesus. Vi Jesus menino, a quem não é preciso mudar de túnica porque a túnica cresce naturalmente com Ele; vi-O fazendo pássaros de barro e soprando-lhes para eles voarem. Vi-O, depois, à porta do rico soberbo que O repele – vi-O sobretudo aparecer nas horas em que se sofre e se espera. Esta religião viva e escondida, esta ânsia do pobre – esta aspiração que não morre para uma vida mais perfeita e mais bela, transmitiu-me uma criada velha e humilde – que tenho sempre diante de mim mancle-mancle, a sorrir- -me com os olhos azuis já turvos pelos anos. E com ela quero viver e morrer.
Que é que nós lhe demos para assim nos amar? Sofrimento, trabalho até cair exausta de dedicação. E ela deu-nos à vida a alegria. Mancou e riu até ao fim. Nenhuma desgraça pôde com ela.Resistiu sempre. Serviu e amou. E no fim morreu ainda servindo-nos e com estas palavras na boca: – Levo-vos no coração!
De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo, desde o jorro de Inverno que transborda ao fio de Setembro, deitado com aflição. Em Agosto secam os montes, em Setembro secam as fontes.
– Se secasse!...
De noite punha o ouvido à escuta – como me acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz é extraordinária de frescura e pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira – nem a das folhas, nem a do vento –, nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tomàs vezes, e por momentos, emudece. Secou! E lá torna a correr...
Plantou árvores até aos últimos dias – como eu as planto. E, já prostrada, mantinha de pé a ilusão. e teimava em sonhar – como eu sonho até ao fim da vida. Foi tal o frenesi, o encanto, as lágrimas, que ainda hoje vivo da vida de minha mãe. Às vezes sonhávamos juntos. Sentava-me ao pé dela e era capaz de estar assim horas perdidas. Ou, tendo corrido pelo quintal numa exaltação, ia direito ao alegrete e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Ela não me dizia palavra nem me estranhava sequer – talvez porque visse em mim reproduzida a mesma sensibilidade exagerada; só me passava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho... A lua aparecia atrás dos montes, sobre a mais bela paisagem do Mundo porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.
Há imagens tão delicadas no fundo do meu ser, que tenho medo que desapareçam tocando-lhes. Apagaram-se pouco e pouco. Melhor: transformaram-se pouco e pouco, mais desvanecidas e mais lindas, num fundo de auréola como certas figuras dos livros. Sinto-a doirada. Pura e doirada. Toda a matéria desapareceu, reduzida a fios de aranha. Ficou uma luz – sentimento que liga as suas raízes às minhas raízes.É quase nada e faz parte da essência da minha alma.
O meu sonho está preso por um fio ténue e indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Só uma única coisa se me conservou intacta na memória – o seu olhar. Talvez porque o amor nunca mais se apaga – talvez porque a luz seja a única realidade do mundo – o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade e o mesmo amor.
Foi ela quem me falou pela primeira vez naquele pobre que costuma entrar pela porta dos desgraçados dentro, quando menos se espera, e se senta ao pé do lume: – Assim andava o Senhor pelo mundo!... –E eu fugia para o fundo do quintal, para sonhar com Ele. Nunca mais deixei de amar a solidão nem de ver esse pobre extraordinário que me tem acompanhado até à velhice.
Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente – e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, que lá está todas as noites sentada ao pé da bica. Não a separo desse fio, que a lua toca por momentos com o seu dedo molhado de branco – e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto aos que sabem amar...
A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada. Era um tipo popular, de energia admirável. Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos dum azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz Velha. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar. Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é que era a expressão mais intima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça. Infatigável e risonha – o riso sempre pronto no trabalho e na dor. Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente, depois de nos servir a vida inteira. A Mari’Enlília era já uma pessoa da família. Raro saía.. As mulheres do seu tempo estavam habituadas à reclusão e só saíam para a missa de capote e coca. A bem dizer-se, a vida conventual estendia-se até cá fora: em todos os quartos de dormir havia um oratório, de castanho ou pau-santo onde dia e noite ardia a lamparina. O da Mari’Emília era tão lindo como a sua alma: o Jesus crucificado sobressaia do fundo de papel azul com estrelinhas doiradas, entre o Bom e o Mau Ladrão. Também lá se via, um pouco a frente, o Menino pela mão de Maria e de José – e, muito maior, outro personagem principal, entre duas velas de cera, Santo António, o santo da sua devoção, que lhe servia de medianeiro quando queria obter os favores celestiais. Do quarto ao lado, onde eu dormia, ouvia-a todas as noites rezar. Ouvia-a com espanto. Era um diálogo cheio de familiaridade com Santo António – era uma coisa pueril que fazia chegar as lágrimas aos olhos. Ela não só lhe pedia – ralhava com ele como ralhava comigo, com autoridade e ternura.
– Tu ouves?... – Silêncio. – Tu ouves?... Tu não me queres ouvir!...– Outro silêncio (naturalmente ele respondia-lhe). – Então eu peço e tu não me ouves?! Tinha-te prometido umas velas de arrátel, mas já não te dou, meu maroto, senão umas de quarta!
E aquilo seguia, durante muito tempo, no mesmo tom, com exclamações e rogos, até eu adormecer...Ao fim de tantos anos de familiaridade, tinham chegado a tratar-se como velhos amigos.
Nos últimos anos, a Mari’Emília já não podia trabalhar, mas fazia, de manhã à noite, as meias de fio branco que meu pai usou até à morte – contando-nos histórias intermináveis. Aprendi com a Mari’Emília coisas extraordinárias – a religião, no que ela tem de mais vivo – o veio que passa escondido de alma para alma do povo e a piedade pelos humildes. Vi Jesus. Vi Jesus menino, a quem não é preciso mudar de túnica porque a túnica cresce naturalmente com Ele; vi-O fazendo pássaros de barro e soprando-lhes para eles voarem. Vi-O, depois, à porta do rico soberbo que O repele – vi-O sobretudo aparecer nas horas em que se sofre e se espera. Esta religião viva e escondida, esta ânsia do pobre – esta aspiração que não morre para uma vida mais perfeita e mais bela, transmitiu-me uma criada velha e humilde – que tenho sempre diante de mim mancle-mancle, a sorrir- -me com os olhos azuis já turvos pelos anos. E com ela quero viver e morrer.
Que é que nós lhe demos para assim nos amar? Sofrimento, trabalho até cair exausta de dedicação. E ela deu-nos à vida a alegria. Mancou e riu até ao fim. Nenhuma desgraça pôde com ela.Resistiu sempre. Serviu e amou. E no fim morreu ainda servindo-nos e com estas palavras na boca: – Levo-vos no coração!
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Sereias no cancioneiro popular
A crença nas Sereias é ainda viva. Elas são raparigas da cinta para cima e peixes da cinta para baixo. Cantam muito bem e enganam os navios (Minho, Beira Alta, Trás-os-Montes, Galiza).
São vulgares estes versos, fragmentos de um romance popular, mas que se dizem como cantiga:
Ouvi cantá-la Sereia
Lá no meio desse mar:
Muito navio se perde
Aos som daquele cantar.
Lá no meio desse mar,
Ouvi cantar, escutei:
Saiu-me a Senhora Sereia
Lá no palácio d'el-rei
Esta noite, à meia-noite,
Ouvi um lindo cantar:
Eram os anjos no céu
Ou as sereia no mar.
Na Galiza dizem:
A Sereia no mar,
É unha linda bizarra,
Quer por unha maldicion,
Tén-na Dios nesa auga.
Valla-me Dios! como canta
A Sereia no mar...
Os navios déron volta
Para y-a ouvir cantar.
Nos Açores ainda existe a crença nas Fadas marinhas, ou sereias, que vêm pentear-se à praia. Num romance da ilha de São Jorge (Cantos pop. do Arquipélago Açoriano, por T. Braga, n.¨ 28 e 32 ) diz-se:
Escutai se q'reis ouvir
Um rico, doce cantar!
Devem ser as Marinhas
Ou os peixinhos do mar.
Que vozes do céo são estas,
que eu aqui ouço cantar?
Ou são anjos no céo
Ou as Sereias no mar.
IN: José Leite de Vasconcelos, Tradições populares de Portugal, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984 p.119
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
Santa Agata
![]() |
Imagem de Santa Agata, Azambuja |
Virgem e mártir, nasceu na Sicília. Segundo uma lenda foi entregue a uma prostituta e foram-lhe cortados os seios; mas S. Pedro curou-a desta mutilação. O seu culto estendeu-se à Igreja universal e o seu nome é lembrado na I Oração Eucarística (Cânone Romano). Várias vezes libertou a sua cidade natal das erupções do temível vulcão Etna. É a protectora das lactentes (humanos e animais), dos fundidores e dos ourives. É figurada com um vaso numa mão, cheia de seios cortados, e na outra com uma faca ou um par de tenazes. A sua festa é a 5 de Fevereiro. Portugal tem uma cidade com o seu nome. [...]
Aqui
Imagem daqui
ALVES REDOL - [São Brás - Nazaré]
São Brás é um santo pobre. Tão pobre que os pescadores do carapau o consideram seu camarada e o único capaz de os ouvir, embora lá no alto, no monte de São Bartolomeu, que é um mamilo despropositado e quase esquecido no meio do pinhal, quando as outras montanhas figuram para longe. Mas o Santo se não os ouve, vê-os com certeza a arrastarem-se na praia, a medirem-se com o mar nas entradas e saídas, a deitarem-se na areia, abatidos, quase sem ganas de erguer um braço, tão agreste lhes vai a vida nestes tempos ruins. E apieda-se deles, dando-lhes resignação, que é a única coisa que um santo pode oferecer do céu.
[...]
Depois do almoço começam os grupos a derramar-se pela estrada além, apinocados os homens nas camisas coloridas de escocês e as raparigas nos aventais de seda bordados com flores, nas saias rodadas e bem curtas, nos cachinés de ramagens e nas blusas de padrões caprichosos, muitas delas com capas pretas pelos ombros, não porque o tempo esteja incerto, mas por lhes ficarem bem. Como manda a tradição, aparecem os primeiros mascarados a assinalar o começo do Carnaval, pois é preciso folgar quem passa vida tormentosa naquele mar de cruzes, que não perdoa a são nem a doente.
Depois do almoço começam os grupos a derramar-se pela estrada além, apinocados os homens nas camisas coloridas de escocês e as raparigas nos aventais de seda bordados com flores, nas saias rodadas e bem curtas, nos cachinés de ramagens e nas blusas de padrões caprichosos, muitas delas com capas pretas pelos ombros, não porque o tempo esteja incerto, mas por lhes ficarem bem. Como manda a tradição, aparecem os primeiros mascarados a assinalar o começo do Carnaval, pois é preciso folgar quem passa vida tormentosa naquele mar de cruzes, que não perdoa a são nem a doente.
Mascaram-se as costureiras de mulheres da Praia, vestem-se estas com fatos de homens, e os homens de matrafonas, seios grossos de trapos, ancas largas com almofadas, em caricaturas de senhoras que já se não usam, de chapéus floridos e peles ratadas a cingirem-lhes os ombros.
Enfiam todos pelo pinhal, onde se fazem fogueiras pequenas para assar a chouriça do costume, bem regada com vinho que os homens levam nos garrafões pequenos e nas cabaças, pinga dum lado, pinga do outro, e a meio da tarde já tudo dança. Dançam em grandes rodas ao som de pequenas charangas, em rodopios de estarrecer, cá em baixo e no planalto do meio da encosta, onde vendilhões oferecem fiadas de pêros secos, bolos de açúcar e canela, pinhões enfiados ou em medidas. É aqui que os mascarados bailam, num primeiro arremedo de grupos carnavalescos. Rapam de pandeiretas e rodopiam, põem as fiadas de pêros à volta do pescoço, e petiscam e cantam, e petiscam e bailam, enquanto os mais devotos lá amarinham por aquele caminho de cabras, num escadório de madeira apoiada nas rochas velhas e com a ajuda de um corrimão de ferro já velho também.
Alves Redol, 'O Lago das Viúvas', romance inédito, 'A Nazaré na Obra de Alves Redol', SEC/Museu Etnográfico e Arqueológico Dr. Joaquim Manso, 1980
[ aportou aqui via Luis Manuel Gaspar, obrigada ]
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Romaria de São Brás - Santa Cruz do Bispo - Matosinhos
O HOMEM DA MAÇA
![]() |
fotografia de Jorge Barros |
A estátua do «Homem da Maça» - que se encontra junto à Capela de São Brás - à qual as raparigas se abraçam para que lhes seja concedido um marido. Caso o desejo não se concretize «dá-se um banho de vinho» à escultura granítica. Era hábito também engrinaldarem-lhe o pescoço com flores.
Quadra cantada pelas raparigas ao «Homem da Maça» na romaria de São Brás:
Meu rico São Brás da Maça,
A vós me vou abraçar,
Arranjai-me um namorado,
Solteira, quero casar
![]() |
São Brás - fotografia e Jorge Barros |
in: Barros, Jorge e Soledade Martinho Costa (2002), Festas e Tradições Populares: Fevereiro. Lisboa: Círculo de Leitores.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
"Para acompanhar as tuas mãos, vi este poema da Adília..."
"Eu quero
um par de luvas
de que cor não sei
para desvestir as mãos
não pense que é para esconder as mãos
não quero desvestir as mãos
não tenho medo das impressões digitais
é para desvestir as mãos
é isso mesmo só isso
não vale a pena abrir os dedos das luvas
dedo a dedo
com a espátula de madeira
não vale a pena deitar pó
de talco dentro dos dedos
essas luvas servem
para desvestir as mãos?
deixe-me ver a sua mão
I
como tem a mão
como é que fez isso?
podia responder-lhe assim
Me gusta ver la sangre!"
in O Decote da Dama de Espadas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.
obrigada Daniel
sábado, 29 de dezembro de 2012
Sophia de Mello Breyner Andresen
MEDEIA
(adaptado de Ovídio)
Três vezes roda, três vezes inunda
Na água da fonte os seus cabelos leves,
Três vezes grita, três vezes se curva
E diz: «Noite fiel aos meus segredos,
Lua e astros que após o dia claro
Iluminais a sombra silenciosa,
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos,
Deuses dos bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa força, pois
Ajudada por vós posso fazer
Que os rios entre as margens espantadas
Voltem correndo até às suas fontes.
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou enchê-los de espuma e fundas ondas,
Posso chamar a mim os ventos, posso
Largá-los cavalgando nos espaços.
As palavras que digo e cada gesto
Que em redor do seu som no ar disponho
Torcem longínquas árvores e os homens
Despedaçam-se e morrem no seu eco.
Posso encher de tormento os animais,
Fazer que a terra cante, que as montanhas
Tremam e que floresçam os penedos.»
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
[um anjo]
Uma criança disse: «Um anjo é uma gaivota.»
«Um anjo é um homem como os outros: o que é, tem asas.»
E outras: «Um anjo é um pássaro cantador.»
«Um anjo é uma andorinha. Tem uma coroa.»
«Um anjo é um homem que tem o sol pendurado atrás da cabeça.»
E uma outra sonhou que tinha engolido o sol.
Herberto Helder, «As Maneiras»/VI (fragmento), Retrato em Movimento, Lisboa, Ulisseia, 1967
[obrigada, Luis Manuel Gaspar]
sábado, 2 de junho de 2012
A Fonte da Moura de S. Julião
Na aldeia de S. Julião, concelho de
Bragança, havia uma fonte conhecida como a “Fonte da Moura” e também lhe
chamavam “Fonte de Cima da Trembla”, pois situava-se no cimo de uma
lameira com esse nome.
Dizem as pessoas de idade que à meia-noite era costume ouvir-se ali tecer um tear. E que numa madrugada de S. João, uma mulher foi à fonte e entrou-lhe a ponta de um cordão para o cântaro. Ela pegou nele e começou a dobar até fazer um novelo grande, tão grande que já não lhe cabia nas mãos. E como só com muita dificuldade conseguia dobar mais, resolveu partir o cordão.
Nesse mesmo instante o novelo desapareceu-lhe das mãos, e ouviu uma voz que disse:
— Marota, que me encantaste para toda a minha vida!
E o tear então nunca mais se ouviu. Dizem que a voz era de uma moura encantada. Se a mulher não tem partido o cordão, a moura teria aparecido na figura de serpente e não fazia mal a ninguém. Bastaria que a mulher lhe tivesse deitado um pouco de saliva na cabeça para ela ficar desencantada e em figura de uma jovem muito bonita.
E traria com ela toda a sua riqueza.
Fonte: PARAFITA, Alexandre A Mitologia dos Mouros: Lendas, Mitos, Serpentes, Tesouros Vila Nova de Gaia, Gailivro, 2006 , p.217-218
AQUI
Dizem as pessoas de idade que à meia-noite era costume ouvir-se ali tecer um tear. E que numa madrugada de S. João, uma mulher foi à fonte e entrou-lhe a ponta de um cordão para o cântaro. Ela pegou nele e começou a dobar até fazer um novelo grande, tão grande que já não lhe cabia nas mãos. E como só com muita dificuldade conseguia dobar mais, resolveu partir o cordão.
Nesse mesmo instante o novelo desapareceu-lhe das mãos, e ouviu uma voz que disse:
— Marota, que me encantaste para toda a minha vida!
E o tear então nunca mais se ouviu. Dizem que a voz era de uma moura encantada. Se a mulher não tem partido o cordão, a moura teria aparecido na figura de serpente e não fazia mal a ninguém. Bastaria que a mulher lhe tivesse deitado um pouco de saliva na cabeça para ela ficar desencantada e em figura de uma jovem muito bonita.
E traria com ela toda a sua riqueza.
Fonte: PARAFITA, Alexandre A Mitologia dos Mouros: Lendas, Mitos, Serpentes, Tesouros Vila Nova de Gaia, Gailivro, 2006 , p.217-218
AQUI
"onde há redes há rendas" II
A renda de bilros é uma indústria da beira-mar, destas mulheres loiras, de olhos azuis e rosto comprido – as da Foz, as de Leça e as de Vila do Conde – que passavam a vida à espera dos homens, enquanto as mãos ágeis iam tecendo ternura e espuma do mar...
Raul Brandão, Os Pescadores
[fotografias retiradas da Internet; autor desconhecido]
quinta-feira, 31 de maio de 2012
diabruras, santidades e prophecias...
"As fadas são encantos, de corpo gentil, rosto formoso, olhar meigo e cabellos côr de oiro. Representam o génio do bem.
No mesmo caso poderemos considerar as moiras encantadas, que pertencem á
mythologia peninsular. São também lindezas, que aparecem geralmente nas
fontes, e com a sua formosura seduzem os mortaes.
As feiticeiras,
de extrama belleza mas com mau instincto, teem olhar vertiginoso, modos
frios e retrahidos. Associadas com espiritos infernaes, usam de muitas
artimanhas para illudirem as pessoas ignorantes e fracas, incutindo-lhes
pensamentos satanicos.
As bruxas e mulheres de virtude são quasi
sempre velhas immundas, de aspecto repelente. Resmungam em rouquenho
orações cabalisticas estropiando algum latinorio; mas para fazerem
sortilegios teem de pedir a intervenção do diabo."
"A razão de ser o burro no
nosso paiz o escolhido para estas transformações infernaes, não se acha
demonstrada philosophicamente. Dizem que o pobre animal em pequeno
enganara o diabo; mostrando uma agilidade e esperteza que mais tarde
perdeu; e que, talvez, d'ahi proviesse a sua condemnação ao despreso.
O burro é quadrupede ignorante mas tão paciente, que só tem um rival - o
camello, com inquestionaveis direitos á estima e consideração dos
homens, das mulheres e das creanças que lhe são affeiçoadas: basta
contar os relevantes serviços que presta e tem prestado. O ditado
popular considera-o garantia para maus cavalleiros, dizendo: antes burro
que me leve que cavallo que me derrube."
"Os
lobishomens e asininohomens são inoffensivos; andam apenas comprindo a
triste sina, procurando sempre os sitios ermos e pouco alumiados. Quando
andam fóra do encanto, distinguem-se dos outros homens em terem as
orelhas mais cumpridas, as ventas
arrebitadas e escuras, o olhar de soslaio e o halito ferido. São muito
desconfiados, tem a voz debil, difficil e guttural, as phalanges dos
dedos das mãos, na face dorsal, callejadas, cabellos vastos e
emaranhados, de côr ruiva com laivos escuros, que muitos confundem com
os restos da agua circassiana, e da cova do ladrão cahe uma pequena
guedelha em caracol.
Lobishomem, esta etymologia só é bem cabida quando o homem se transforma em lobo, o que tem sido pouco vulgar no nosso paiz, que, talvez, por ser quente, o homem se metamorphoseia as mais das vezes em burro, e n'este caso deve dizer-se asininohomem."
Lobishomem, esta etymologia só é bem cabida quando o homem se transforma em lobo, o que tem sido pouco vulgar no nosso paiz, que, talvez, por ser quente, o homem se metamorphoseia as mais das vezes em burro, e n'este caso deve dizer-se asininohomem."
[ obrigada, Daniel :) ]
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