Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga.
Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, Publicações Europa-América, p. 9
AQUI
domingo, 24 de fevereiro de 2013
sábado, 23 de fevereiro de 2013
António Nobre - Nasci, num reino d'Oiro e amores
Nasci, num reino d'Oiro e amores
À beira-mar.
Sou neto de Navegadores,
Heróis, Lobos-d'água, Senhores
Da índia, d'Aquém e d'Além-mar!
E o Vento mia! e o Vento mia!
Que irá no Mar!
Que noite! ó minha Irmã Maria
Acende um círio à Virgem Pia,
Pelos que andam no alto Mar...
Ao Mundo vim, em terça-feira
Que noite! ó minha Irmã Maria
Acende um círio à Virgem Pia,
Pelos que andam no alto Mar...
Ao Mundo vim, em terça-feira
Um sino ouvia-se
dobrar!
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa terça-feira,
Estive já pra me matar...
Ides gelar, água das fontes
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa terça-feira,
Estive já pra me matar...
Ides gelar, água das fontes
Ides gelar!
Águas do rio! Águas dos montes!
Cantigas d'água pelos montes,
Que sois como amas a cantar...
Passam na rua os estudantes
Águas do rio! Águas dos montes!
Cantigas d'água pelos montes,
Que sois como amas a cantar...
Passam na rua os estudantes
A vadrulhar...
Assim como eles era eu dantes!
Meus camaradas! estudantes!
Deixai o Poeta trabalhar.
O Job, coberto de gangrenas,
Assim como eles era eu dantes!
Meus camaradas! estudantes!
Deixai o Poeta trabalhar.
O Job, coberto de gangrenas,
Meu avatar!
Conservo as mesmas tuas penas,
Mais tuas chagas e gangrenas,
Que não me farto de coçar!
E a neve cai, como farinha,
Conservo as mesmas tuas penas,
Mais tuas chagas e gangrenas,
Que não me farto de coçar!
E a neve cai, como farinha,
Lá desse moinho a
moer, no Ar;
Ó bom Moleiro, cautelinha!
Não desperdices a farinha
Que tanto custa a germinar...
Andais, à neve, sem sapatos,
Ó bom Moleiro, cautelinha!
Não desperdices a farinha
Que tanto custa a germinar...
Andais, à neve, sem sapatos,
Vós que não tendes
que calçar!
Corpos ao léu, vesti meus fatos!
Pés nus! levai esses sapatos...
Basta-me um par.
Quando eu morrer, hirto de mágoa,
Corpos ao léu, vesti meus fatos!
Pés nus! levai esses sapatos...
Basta-me um par.
Quando eu morrer, hirto de mágoa,
Deitem-me ao Mar!
Irei indo de frágua em frágua,
Até que, enfim, desfeito em água,
Hei de fazer parte do Mar!
No Pantéon, trágico, o sino
Irei indo de frágua em frágua,
Até que, enfim, desfeito em água,
Hei de fazer parte do Mar!
No Pantéon, trágico, o sino
Dá meia-noite,
devagar:
É o Vítor, outra vez menino,
A compor um alexandrino,
Pelos seus dedos a contar!
Que olhos tristes tem meu vizinho!
É o Vítor, outra vez menino,
A compor um alexandrino,
Pelos seus dedos a contar!
Que olhos tristes tem meu vizinho!
Vê-me a comer e
põe-se a ougar:
Sobe ao meu quarto, bom velhinho!
Que eu dou-te um copo deste vinho
E metade do meu jantar.
Bairro Latino! dorme um pouco,
Sobe ao meu quarto, bom velhinho!
Que eu dou-te um copo deste vinho
E metade do meu jantar.
Bairro Latino! dorme um pouco,
Faze, meu Deus, por
sossegar!
Cala-te, Georges! estás já rouco!
Deixa-me em paz! Cala-te, louco.
Ó boulevard!
Boas almas, vinde ao meu seio!
Cala-te, Georges! estás já rouco!
Deixa-me em paz! Cala-te, louco.
Ó boulevard!
Boas almas, vinde ao meu seio!
Espíritos errantes
no Ar!
Sou médium: evoco-os, noite em meio!
Vós não acreditais, eu sei-o...
Deixá-lo não acreditar.
Se eu vos pudesse dar a vista,
Sou médium: evoco-os, noite em meio!
Vós não acreditais, eu sei-o...
Deixá-lo não acreditar.
Se eu vos pudesse dar a vista,
Ceguinhos que ides
a tactear...
Quando essa sorte me contrista!
Mas ah! mais vale não ter vista
Que um mundo destes ter de olhar...
A Morte, agora, é a minha Ama
Quando essa sorte me contrista!
Mas ah! mais vale não ter vista
Que um mundo destes ter de olhar...
A Morte, agora, é a minha Ama
Que bem que sabe
acalentar!
À noite, quando estou na cama:
"Nana, nana, que a tua Ama
Vem já, não tarda! foi cavar..."
Camões! Ó Poeta do Mar-bravo!
À noite, quando estou na cama:
"Nana, nana, que a tua Ama
Vem já, não tarda! foi cavar..."
Camões! Ó Poeta do Mar-bravo!
Vem-me ajudar...
Tenho o nome do teu escravo:
Em nome dele e do Mar-bravo
Vem-me ajudar!
E o Vento geme! e o Vento geme!
Tenho o nome do teu escravo:
Em nome dele e do Mar-bravo
Vem-me ajudar!
E o Vento geme! e o Vento geme!
Que irá no Mar!
Lobos-d'água, que ides ao leme
Tende cuidado! A lancha treme.
Orçar! orçar!
Meu velho Cão, meu grande amigo,
Lobos-d'água, que ides ao leme
Tende cuidado! A lancha treme.
Orçar! orçar!
Meu velho Cão, meu grande amigo,
Por que me estás
assim a olhar!
Quando eu choro, choras comigo
Meu velho Cão! és meu amigo...
Tu nunca me hás-de abandonar.
Frades do Monte de Crestelo!
Quando eu choro, choras comigo
Meu velho Cão! és meu amigo...
Tu nunca me hás-de abandonar.
Frades do Monte de Crestelo!
Abri-me as portas!
quero entrar...
Cortai-me as barbas e o cabelo,
Vesti-me esse hábito singelo...
Deixai-me entrar!
Moço Lusíada! criança!
Cortai-me as barbas e o cabelo,
Vesti-me esse hábito singelo...
Deixai-me entrar!
Moço Lusíada! criança!
Por que estás
triste, a meditar?
Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?
Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?
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António Nobre,
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mar,
morte,
rio
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Aspectos do ex-voto pictórico português
CARLOS NOGUEIRA
CENTRO DE TRADIÇÕES POPULARES PORTUGUESAS
“PROF. MANUEL VIEGAS GUERREIRO” / UNIVERSIDADE DE LISBOA
Resumo
O ex-voto, como objecto, que, colocado em ermidas, igrejas, capelas, etc., se oferece a Deus, à Virgem Maria ou a um santo, em cumprimento de um voto (do latim ex voto, “segundo promessa”), tem, em Portugal, uma das expressões mais quantiosas e ricas nas tábuas, painéis, quadros ou retábulos votivos, a que se atribui ainda a designação de “milagres” (por empréstimo sinedóquico da fórmula de abertura de grande parte destes artefactos, a qual, de resto, de todas aquela que certamente não é apenas do uso de especialistas, reenvia imediatamente para a práxis religiosa que se celebra e para o conteúdo diegético humano-religioso que ali se concentra). As narrativas pictóricas neles plasmadas, alusivas, na sua maioria, a moribundos e a naufrágios, a par das inscrições que os acompanham e prolongam, consubstanciam uma fenomenologia do corpo e da alma que importa conhecer, para o que é necessário convocar conhecimentos interdisciplinares (da semiologia, da estética, da literatura, da linguística, da etnologia, da sociologia, da religião...).
DAQUI
Oração ao deitar - Serra da Estrela
«Com Deus me deito
Com Deus me levanto
Com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo.
Com três anjos aos pés
e quatro à cabeceira,
e Nossa Senhora na dianteira.
Se eu dormir embalai-me
Se eu morrer, acompanhai-me»
in: Pinharanda Gomes, "Piedade Eclesial, Piedade Popular", Separata de LAIKOS, Lisboa, 1980
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Raúl Brandão - Memórias (vol.III)
HÁ QUE TEMPOS!...
Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado... Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão: viu cair por terra todos os seus sonhos – e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo! A realidade temerosa afastou-a sempre de si. Venceu-a. Deu-nos vida a todos. Alimentou-nos do mesmo sonho que a devorou até final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Foi dela que herdei a sensibilidade e o amor pelas árvores, pela água, e dela herdei também o sonho... Bastava que a bica do quintal- deitasse menos para minha mãe adoecer. Ficava horas a olhar, extasiada, o pouco de musgo humedecido, donde escorria, vindo da escuridão, com um hálito de frescura, o fio azul infatigável, que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas líquidas que logo subiam à superfície reluzindo em bolhas iluminadas. Às vezes íamos vê-la brotar no fundo da mina, e ansiosos e calados assistíamos na escuridão ao nascer misterioso da água borbulhando na madre e escorrendo logo pela caleira de pedra. Quando mais tarde minei o monte, fi-lo com a mesma ansiedade. Ver na terra sequiosa e inútil escorrerem as primeiras gotas que lhe dão vida e a transformam é um dos espectáculos mais lindos que conheço. É criar.
De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo, desde o jorro de Inverno que transborda ao fio de Setembro, deitado com aflição. Em Agosto secam os montes, em Setembro secam as fontes.
– Se secasse!...
De noite punha o ouvido à escuta – como me acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz é extraordinária de frescura e pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira – nem a das folhas, nem a do vento –, nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tomàs vezes, e por momentos, emudece. Secou! E lá torna a correr...
Plantou árvores até aos últimos dias – como eu as planto. E, já prostrada, mantinha de pé a ilusão. e teimava em sonhar – como eu sonho até ao fim da vida. Foi tal o frenesi, o encanto, as lágrimas, que ainda hoje vivo da vida de minha mãe. Às vezes sonhávamos juntos. Sentava-me ao pé dela e era capaz de estar assim horas perdidas. Ou, tendo corrido pelo quintal numa exaltação, ia direito ao alegrete e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Ela não me dizia palavra nem me estranhava sequer – talvez porque visse em mim reproduzida a mesma sensibilidade exagerada; só me passava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho... A lua aparecia atrás dos montes, sobre a mais bela paisagem do Mundo porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.
Há imagens tão delicadas no fundo do meu ser, que tenho medo que desapareçam tocando-lhes. Apagaram-se pouco e pouco. Melhor: transformaram-se pouco e pouco, mais desvanecidas e mais lindas, num fundo de auréola como certas figuras dos livros. Sinto-a doirada. Pura e doirada. Toda a matéria desapareceu, reduzida a fios de aranha. Ficou uma luz – sentimento que liga as suas raízes às minhas raízes.É quase nada e faz parte da essência da minha alma.
O meu sonho está preso por um fio ténue e indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Só uma única coisa se me conservou intacta na memória – o seu olhar. Talvez porque o amor nunca mais se apaga – talvez porque a luz seja a única realidade do mundo – o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade e o mesmo amor.
Foi ela quem me falou pela primeira vez naquele pobre que costuma entrar pela porta dos desgraçados dentro, quando menos se espera, e se senta ao pé do lume: – Assim andava o Senhor pelo mundo!... –E eu fugia para o fundo do quintal, para sonhar com Ele. Nunca mais deixei de amar a solidão nem de ver esse pobre extraordinário que me tem acompanhado até à velhice.
Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente – e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, que lá está todas as noites sentada ao pé da bica. Não a separo desse fio, que a lua toca por momentos com o seu dedo molhado de branco – e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto aos que sabem amar...
A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada. Era um tipo popular, de energia admirável. Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos dum azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz Velha. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar. Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é que era a expressão mais intima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça. Infatigável e risonha – o riso sempre pronto no trabalho e na dor. Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente, depois de nos servir a vida inteira. A Mari’Enlília era já uma pessoa da família. Raro saía.. As mulheres do seu tempo estavam habituadas à reclusão e só saíam para a missa de capote e coca. A bem dizer-se, a vida conventual estendia-se até cá fora: em todos os quartos de dormir havia um oratório, de castanho ou pau-santo onde dia e noite ardia a lamparina. O da Mari’Emília era tão lindo como a sua alma: o Jesus crucificado sobressaia do fundo de papel azul com estrelinhas doiradas, entre o Bom e o Mau Ladrão. Também lá se via, um pouco a frente, o Menino pela mão de Maria e de José – e, muito maior, outro personagem principal, entre duas velas de cera, Santo António, o santo da sua devoção, que lhe servia de medianeiro quando queria obter os favores celestiais. Do quarto ao lado, onde eu dormia, ouvia-a todas as noites rezar. Ouvia-a com espanto. Era um diálogo cheio de familiaridade com Santo António – era uma coisa pueril que fazia chegar as lágrimas aos olhos. Ela não só lhe pedia – ralhava com ele como ralhava comigo, com autoridade e ternura.
– Tu ouves?... – Silêncio. – Tu ouves?... Tu não me queres ouvir!...– Outro silêncio (naturalmente ele respondia-lhe). – Então eu peço e tu não me ouves?! Tinha-te prometido umas velas de arrátel, mas já não te dou, meu maroto, senão umas de quarta!
E aquilo seguia, durante muito tempo, no mesmo tom, com exclamações e rogos, até eu adormecer...Ao fim de tantos anos de familiaridade, tinham chegado a tratar-se como velhos amigos.
Nos últimos anos, a Mari’Emília já não podia trabalhar, mas fazia, de manhã à noite, as meias de fio branco que meu pai usou até à morte – contando-nos histórias intermináveis. Aprendi com a Mari’Emília coisas extraordinárias – a religião, no que ela tem de mais vivo – o veio que passa escondido de alma para alma do povo e a piedade pelos humildes. Vi Jesus. Vi Jesus menino, a quem não é preciso mudar de túnica porque a túnica cresce naturalmente com Ele; vi-O fazendo pássaros de barro e soprando-lhes para eles voarem. Vi-O, depois, à porta do rico soberbo que O repele – vi-O sobretudo aparecer nas horas em que se sofre e se espera. Esta religião viva e escondida, esta ânsia do pobre – esta aspiração que não morre para uma vida mais perfeita e mais bela, transmitiu-me uma criada velha e humilde – que tenho sempre diante de mim mancle-mancle, a sorrir- -me com os olhos azuis já turvos pelos anos. E com ela quero viver e morrer.
Que é que nós lhe demos para assim nos amar? Sofrimento, trabalho até cair exausta de dedicação. E ela deu-nos à vida a alegria. Mancou e riu até ao fim. Nenhuma desgraça pôde com ela.Resistiu sempre. Serviu e amou. E no fim morreu ainda servindo-nos e com estas palavras na boca: – Levo-vos no coração!
De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo, desde o jorro de Inverno que transborda ao fio de Setembro, deitado com aflição. Em Agosto secam os montes, em Setembro secam as fontes.
– Se secasse!...
De noite punha o ouvido à escuta – como me acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz é extraordinária de frescura e pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira – nem a das folhas, nem a do vento –, nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tomàs vezes, e por momentos, emudece. Secou! E lá torna a correr...
Plantou árvores até aos últimos dias – como eu as planto. E, já prostrada, mantinha de pé a ilusão. e teimava em sonhar – como eu sonho até ao fim da vida. Foi tal o frenesi, o encanto, as lágrimas, que ainda hoje vivo da vida de minha mãe. Às vezes sonhávamos juntos. Sentava-me ao pé dela e era capaz de estar assim horas perdidas. Ou, tendo corrido pelo quintal numa exaltação, ia direito ao alegrete e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Ela não me dizia palavra nem me estranhava sequer – talvez porque visse em mim reproduzida a mesma sensibilidade exagerada; só me passava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho... A lua aparecia atrás dos montes, sobre a mais bela paisagem do Mundo porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.
Há imagens tão delicadas no fundo do meu ser, que tenho medo que desapareçam tocando-lhes. Apagaram-se pouco e pouco. Melhor: transformaram-se pouco e pouco, mais desvanecidas e mais lindas, num fundo de auréola como certas figuras dos livros. Sinto-a doirada. Pura e doirada. Toda a matéria desapareceu, reduzida a fios de aranha. Ficou uma luz – sentimento que liga as suas raízes às minhas raízes.É quase nada e faz parte da essência da minha alma.
O meu sonho está preso por um fio ténue e indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Só uma única coisa se me conservou intacta na memória – o seu olhar. Talvez porque o amor nunca mais se apaga – talvez porque a luz seja a única realidade do mundo – o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade e o mesmo amor.
Foi ela quem me falou pela primeira vez naquele pobre que costuma entrar pela porta dos desgraçados dentro, quando menos se espera, e se senta ao pé do lume: – Assim andava o Senhor pelo mundo!... –E eu fugia para o fundo do quintal, para sonhar com Ele. Nunca mais deixei de amar a solidão nem de ver esse pobre extraordinário que me tem acompanhado até à velhice.
Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente – e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, que lá está todas as noites sentada ao pé da bica. Não a separo desse fio, que a lua toca por momentos com o seu dedo molhado de branco – e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto aos que sabem amar...
A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada. Era um tipo popular, de energia admirável. Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos dum azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz Velha. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar. Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é que era a expressão mais intima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça. Infatigável e risonha – o riso sempre pronto no trabalho e na dor. Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente, depois de nos servir a vida inteira. A Mari’Enlília era já uma pessoa da família. Raro saía.. As mulheres do seu tempo estavam habituadas à reclusão e só saíam para a missa de capote e coca. A bem dizer-se, a vida conventual estendia-se até cá fora: em todos os quartos de dormir havia um oratório, de castanho ou pau-santo onde dia e noite ardia a lamparina. O da Mari’Emília era tão lindo como a sua alma: o Jesus crucificado sobressaia do fundo de papel azul com estrelinhas doiradas, entre o Bom e o Mau Ladrão. Também lá se via, um pouco a frente, o Menino pela mão de Maria e de José – e, muito maior, outro personagem principal, entre duas velas de cera, Santo António, o santo da sua devoção, que lhe servia de medianeiro quando queria obter os favores celestiais. Do quarto ao lado, onde eu dormia, ouvia-a todas as noites rezar. Ouvia-a com espanto. Era um diálogo cheio de familiaridade com Santo António – era uma coisa pueril que fazia chegar as lágrimas aos olhos. Ela não só lhe pedia – ralhava com ele como ralhava comigo, com autoridade e ternura.
– Tu ouves?... – Silêncio. – Tu ouves?... Tu não me queres ouvir!...– Outro silêncio (naturalmente ele respondia-lhe). – Então eu peço e tu não me ouves?! Tinha-te prometido umas velas de arrátel, mas já não te dou, meu maroto, senão umas de quarta!
E aquilo seguia, durante muito tempo, no mesmo tom, com exclamações e rogos, até eu adormecer...Ao fim de tantos anos de familiaridade, tinham chegado a tratar-se como velhos amigos.
Nos últimos anos, a Mari’Emília já não podia trabalhar, mas fazia, de manhã à noite, as meias de fio branco que meu pai usou até à morte – contando-nos histórias intermináveis. Aprendi com a Mari’Emília coisas extraordinárias – a religião, no que ela tem de mais vivo – o veio que passa escondido de alma para alma do povo e a piedade pelos humildes. Vi Jesus. Vi Jesus menino, a quem não é preciso mudar de túnica porque a túnica cresce naturalmente com Ele; vi-O fazendo pássaros de barro e soprando-lhes para eles voarem. Vi-O, depois, à porta do rico soberbo que O repele – vi-O sobretudo aparecer nas horas em que se sofre e se espera. Esta religião viva e escondida, esta ânsia do pobre – esta aspiração que não morre para uma vida mais perfeita e mais bela, transmitiu-me uma criada velha e humilde – que tenho sempre diante de mim mancle-mancle, a sorrir- -me com os olhos azuis já turvos pelos anos. E com ela quero viver e morrer.
Que é que nós lhe demos para assim nos amar? Sofrimento, trabalho até cair exausta de dedicação. E ela deu-nos à vida a alegria. Mancou e riu até ao fim. Nenhuma desgraça pôde com ela.Resistiu sempre. Serviu e amou. E no fim morreu ainda servindo-nos e com estas palavras na boca: – Levo-vos no coração!
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Sereias no cancioneiro popular
A crença nas Sereias é ainda viva. Elas são raparigas da cinta para cima e peixes da cinta para baixo. Cantam muito bem e enganam os navios (Minho, Beira Alta, Trás-os-Montes, Galiza).
São vulgares estes versos, fragmentos de um romance popular, mas que se dizem como cantiga:
Ouvi cantá-la Sereia
Lá no meio desse mar:
Muito navio se perde
Aos som daquele cantar.
Lá no meio desse mar,
Ouvi cantar, escutei:
Saiu-me a Senhora Sereia
Lá no palácio d'el-rei
Esta noite, à meia-noite,
Ouvi um lindo cantar:
Eram os anjos no céu
Ou as sereia no mar.
Na Galiza dizem:
A Sereia no mar,
É unha linda bizarra,
Quer por unha maldicion,
Tén-na Dios nesa auga.
Valla-me Dios! como canta
A Sereia no mar...
Os navios déron volta
Para y-a ouvir cantar.
Nos Açores ainda existe a crença nas Fadas marinhas, ou sereias, que vêm pentear-se à praia. Num romance da ilha de São Jorge (Cantos pop. do Arquipélago Açoriano, por T. Braga, n.¨ 28 e 32 ) diz-se:
Escutai se q'reis ouvir
Um rico, doce cantar!
Devem ser as Marinhas
Ou os peixinhos do mar.
Que vozes do céo são estas,
que eu aqui ouço cantar?
Ou são anjos no céo
Ou as Sereias no mar.
IN: José Leite de Vasconcelos, Tradições populares de Portugal, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984 p.119
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
Santa Agata
![]() |
Imagem de Santa Agata, Azambuja |
Virgem e mártir, nasceu na Sicília. Segundo uma lenda foi entregue a uma prostituta e foram-lhe cortados os seios; mas S. Pedro curou-a desta mutilação. O seu culto estendeu-se à Igreja universal e o seu nome é lembrado na I Oração Eucarística (Cânone Romano). Várias vezes libertou a sua cidade natal das erupções do temível vulcão Etna. É a protectora das lactentes (humanos e animais), dos fundidores e dos ourives. É figurada com um vaso numa mão, cheia de seios cortados, e na outra com uma faca ou um par de tenazes. A sua festa é a 5 de Fevereiro. Portugal tem uma cidade com o seu nome. [...]
Aqui
Imagem daqui
ALVES REDOL - [São Brás - Nazaré]
São Brás é um santo pobre. Tão pobre que os pescadores do carapau o consideram seu camarada e o único capaz de os ouvir, embora lá no alto, no monte de São Bartolomeu, que é um mamilo despropositado e quase esquecido no meio do pinhal, quando as outras montanhas figuram para longe. Mas o Santo se não os ouve, vê-os com certeza a arrastarem-se na praia, a medirem-se com o mar nas entradas e saídas, a deitarem-se na areia, abatidos, quase sem ganas de erguer um braço, tão agreste lhes vai a vida nestes tempos ruins. E apieda-se deles, dando-lhes resignação, que é a única coisa que um santo pode oferecer do céu.
[...]
Depois do almoço começam os grupos a derramar-se pela estrada além, apinocados os homens nas camisas coloridas de escocês e as raparigas nos aventais de seda bordados com flores, nas saias rodadas e bem curtas, nos cachinés de ramagens e nas blusas de padrões caprichosos, muitas delas com capas pretas pelos ombros, não porque o tempo esteja incerto, mas por lhes ficarem bem. Como manda a tradição, aparecem os primeiros mascarados a assinalar o começo do Carnaval, pois é preciso folgar quem passa vida tormentosa naquele mar de cruzes, que não perdoa a são nem a doente.
Depois do almoço começam os grupos a derramar-se pela estrada além, apinocados os homens nas camisas coloridas de escocês e as raparigas nos aventais de seda bordados com flores, nas saias rodadas e bem curtas, nos cachinés de ramagens e nas blusas de padrões caprichosos, muitas delas com capas pretas pelos ombros, não porque o tempo esteja incerto, mas por lhes ficarem bem. Como manda a tradição, aparecem os primeiros mascarados a assinalar o começo do Carnaval, pois é preciso folgar quem passa vida tormentosa naquele mar de cruzes, que não perdoa a são nem a doente.
Mascaram-se as costureiras de mulheres da Praia, vestem-se estas com fatos de homens, e os homens de matrafonas, seios grossos de trapos, ancas largas com almofadas, em caricaturas de senhoras que já se não usam, de chapéus floridos e peles ratadas a cingirem-lhes os ombros.
Enfiam todos pelo pinhal, onde se fazem fogueiras pequenas para assar a chouriça do costume, bem regada com vinho que os homens levam nos garrafões pequenos e nas cabaças, pinga dum lado, pinga do outro, e a meio da tarde já tudo dança. Dançam em grandes rodas ao som de pequenas charangas, em rodopios de estarrecer, cá em baixo e no planalto do meio da encosta, onde vendilhões oferecem fiadas de pêros secos, bolos de açúcar e canela, pinhões enfiados ou em medidas. É aqui que os mascarados bailam, num primeiro arremedo de grupos carnavalescos. Rapam de pandeiretas e rodopiam, põem as fiadas de pêros à volta do pescoço, e petiscam e cantam, e petiscam e bailam, enquanto os mais devotos lá amarinham por aquele caminho de cabras, num escadório de madeira apoiada nas rochas velhas e com a ajuda de um corrimão de ferro já velho também.
Alves Redol, 'O Lago das Viúvas', romance inédito, 'A Nazaré na Obra de Alves Redol', SEC/Museu Etnográfico e Arqueológico Dr. Joaquim Manso, 1980
[ aportou aqui via Luis Manuel Gaspar, obrigada ]
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Romaria de São Brás - Santa Cruz do Bispo - Matosinhos
O HOMEM DA MAÇA
![]() |
fotografia de Jorge Barros |
A estátua do «Homem da Maça» - que se encontra junto à Capela de São Brás - à qual as raparigas se abraçam para que lhes seja concedido um marido. Caso o desejo não se concretize «dá-se um banho de vinho» à escultura granítica. Era hábito também engrinaldarem-lhe o pescoço com flores.
Quadra cantada pelas raparigas ao «Homem da Maça» na romaria de São Brás:
Meu rico São Brás da Maça,
A vós me vou abraçar,
Arranjai-me um namorado,
Solteira, quero casar
![]() |
São Brás - fotografia e Jorge Barros |
in: Barros, Jorge e Soledade Martinho Costa (2002), Festas e Tradições Populares: Fevereiro. Lisboa: Círculo de Leitores.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
"Para acompanhar as tuas mãos, vi este poema da Adília..."
"Eu quero
um par de luvas
de que cor não sei
para desvestir as mãos
não pense que é para esconder as mãos
não quero desvestir as mãos
não tenho medo das impressões digitais
é para desvestir as mãos
é isso mesmo só isso
não vale a pena abrir os dedos das luvas
dedo a dedo
com a espátula de madeira
não vale a pena deitar pó
de talco dentro dos dedos
essas luvas servem
para desvestir as mãos?
deixe-me ver a sua mão
I
como tem a mão
como é que fez isso?
podia responder-lhe assim
Me gusta ver la sangre!"
in O Decote da Dama de Espadas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.
obrigada Daniel
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