domingo, 16 de junho de 2013

O sardão da Lapa

Consta-se que uma mulher vinha dum povoado chamado Forca a caminho de Quintela com um saco de novelos de linho para tecer. A meio da encosta da serra, num local conhecido por Cova, foi atacada por um grande lagarto. Este, de boca enorme, tentou morder a mulher que, aflita, pediu ajuda à Senhora da Lapa. Foi então que lhe veio a ideia de atirar ao monstro os novelos que no saco levava, ficando com a ponta dos fios nas mãos.
O bicharoco ia engolindo os novelos que a mulher lhe arremessava. Quando já tinha na mão uma grande quantidade de pontas, a mulher deu uns puxões que engasgaram a fera.
Em sinal de gratidão, a mulher ofereceu o corpo do lagarto à Senhora da Lapa.
Fonte Biblio AA. VV., - Literatura Portuguesa de Tradição Oral s/l, Projecto Vercial - Univ. Trás -os-Montes e Alto Douro, 2003 , p.L3

daqui

Vitorino Nemésio - A concha


A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa. . . Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.


Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, 1938  


Helena Nilo


Helena Nilo

sábado, 20 de abril de 2013

...



"Tenho, do passado, somente saudades de pessoas idas, a quem amei; mas não é saudade do tempo em que as amei, mas a saudade delas: queria-as vivas hoje, e com a idade que hoje tivessem, se até hoje tivessem vivido."

Fernando Pessoa, Carta a João Gaspar Simões - 11 Dez. 1931



19/04/1967 - 29/06/1995

Alhandra - 17/04/2013






Gravura de Maria Irene Ribeiro
(Casa-Museu Sousa Martins)


Xilogravura de Augusto Bértholo
(Casa-Museu Sousa Martins)


(Casa-Museu Sousa Martins)







[ obrigada, Daniel, por tudo e todos : ) ]

terça-feira, 26 de março de 2013




Manoel de Oliveira, Douro, Faina Fluvial, 1931
Adaptação musical: Maestro Luís de Freitas Branco



sábado, 23 de março de 2013

Sophia de Mello Breyner Andresen - PRIMAVERA


As heras de outras eras água pedra
E passa devagar memória antiga
Com brisa madressilva e Primavera
E o desejo da jovem noite nua
Música passando pelas veias
E a sombra das folhagens nas paredes
Descalço o passo sobre os musgos verdes
E a noite transparente e distraída
Com seu sabor de rosa densa e breve
Onde me lembro amor de ter morrido
— Sangue feroz do tempo possuído





Natália Correia - Fiz um conto para me embalar



Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.

Fialho de Almeida - 'A princesinha das rosas'




(...)
Captiva por aquella phantasmagoria do lago, 
a princesa desceu á praia uma noite ... o luar vinha
nascendo... — diz que uma barca atracara 
ás escadarias dos cães, negra barca de mudos barqueiros,
anões com hombros de titans, cujos olhos phosphorejavam
por baixo de chapéus feitos de grandes cogumellos.

Mas a princesa, a princesa? 

Diz que pelas velhas estradas trotam mensageiros
anciosos, creanças n'aquelle tempo, hoje velhos de 
mil annos, que vâo perguntando aos viandantes se a 
viram passar alli. Quanta maior certeza elles teem 
de não achar quem procuram, tanto mais frenéticos 
precipitam os voos seus cavallos esqueletos. 
(...)
 
Livro AQUI


Alexandre O’Neill - «O TEJO CORRE NO TEJO»


17.7.2012


Tu que passas por mim tão indiferente,
no teu correr vazio de sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.

Não, Tejo, 
não és tu que em mim te vês, 
- sou eu que em ti me vejo! 
Por isso, à tua beira se demora
aquele que a saudade ainda trespassa,
repetindo a lição, que não decora,
de ser, aqui e agora,
só um homem a olhar para o que passa.
Não, Tejo, 
não és tu que em mim te vês, 
- sou eu que em ti me vejo! 
Um voo desferido é uma gaivota,
não é o voo da imaginação;
gritos não são agoiros, são a lota…
Vá, não faças batota,
Deixa ficar as coisas onde estão…
Não, Tejo, 
não és tu que em mim te vês, 
- sou eu que em ti me vejo! 
Tejo desta canção, que o teu correr
não seja o meu pretexto de saudade.
Saudade tenho, sim, mas de perder,
sem as poder deter,
as águas vivas da realidade!
Não, Tejo, 
não és tu que em mim te vês, 
- sou eu, em mim, que me vejo! 


 In Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Soeiro Pereira Gomes

Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga.

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, Publicações Europa-América, p. 9

AQUI

sábado, 23 de fevereiro de 2013


Helena Nilo | Guincho, Setembro | 2012

António Nobre - Nasci, num reino d'Oiro e amores


Nasci, num reino d'Oiro e amores
À beira-mar. 
Sou neto de Navegadores, 
Heróis, Lobos-d'água, Senhores 
Da índia, d'Aquém e d'Além-mar! 

E o Vento mia! e o Vento mia! 
Que irá no Mar! 
Que noite! ó minha Irmã Maria 
Acende um círio à Virgem Pia, 
Pelos que andam no alto Mar... 

Ao Mundo vim, em terça-feira 
Um sino ouvia-se dobrar! 
Vim a subir pela ladeira 
E, numa certa terça-feira, 
Estive já pra me matar... 

Ides gelar, água das fontes 
Ides gelar! 
Águas do rio! Águas dos montes! 
Cantigas d'água pelos montes, 
Que sois como amas a cantar... 

Passam na rua os estudantes 
A vadrulhar... 
Assim como eles era eu dantes! 
Meus camaradas! estudantes! 
Deixai o Poeta trabalhar. 

O Job, coberto de gangrenas, 
Meu avatar! 
Conservo as mesmas tuas penas, 
Mais tuas chagas e gangrenas, 
Que não me farto de coçar! 

E a neve cai, como farinha, 
Lá desse moinho a moer, no Ar; 
Ó bom Moleiro, cautelinha! 
Não desperdices a farinha 
Que tanto custa a germinar... 

Andais, à neve, sem sapatos, 
Vós que não tendes que calçar! 
Corpos ao léu, vesti meus fatos! 
Pés nus! levai esses sapatos... 
Basta-me um par. 

Quando eu morrer, hirto de mágoa, 
Deitem-me ao Mar! 
Irei indo de frágua em frágua, 
Até que, enfim, desfeito em água, 
Hei de fazer parte do Mar! 

No Pantéon, trágico, o sino 
Dá meia-noite, devagar: 
É o Vítor, outra vez menino, 
A compor um alexandrino, 
Pelos seus dedos a contar! 

Que olhos tristes tem meu vizinho! 
Vê-me a comer e põe-se a ougar: 
Sobe ao meu quarto, bom velhinho! 
Que eu dou-te um copo deste vinho 
E metade do meu jantar. 

Bairro Latino! dorme um pouco, 
Faze, meu Deus, por sossegar! 
Cala-te, Georges! estás já rouco! 
Deixa-me em paz! Cala-te, louco. 
Ó boulevard! 

Boas almas, vinde ao meu seio! 
Espíritos errantes no Ar! 
Sou médium: evoco-os, noite em meio! 
Vós não acreditais, eu sei-o... 
Deixá-lo não acreditar. 

Se eu vos pudesse dar a vista, 
Ceguinhos que ides a tactear... 
Quando essa sorte me contrista! 
Mas ah! mais vale não ter vista 
Que um mundo destes ter de olhar... 

A Morte, agora, é a minha Ama 
Que bem que sabe acalentar! 
À noite, quando estou na cama: 
"Nana, nana, que a tua Ama 
Vem já, não tarda! foi cavar..." 

Camões! Ó Poeta do Mar-bravo! 
Vem-me ajudar... 
Tenho o nome do teu escravo: 
Em nome dele e do Mar-bravo 
Vem-me ajudar! 

E o Vento geme! e o Vento geme! 
Que irá no Mar! 
Lobos-d'água, que ides ao leme 
Tende cuidado! A lancha treme. 
Orçar! orçar! 

Meu velho Cão, meu grande amigo, 
Por que me estás assim a olhar! 
Quando eu choro, choras comigo 
Meu velho Cão! és meu amigo... 
Tu nunca me hás-de abandonar. 

Frades do Monte de Crestelo! 
Abri-me as portas! quero entrar... 
Cortai-me as barbas e o cabelo, 
Vesti-me esse hábito singelo... 
Deixai-me entrar! 

Moço Lusíada! criança! 
Por que estás triste, a meditar? 
Vês teu país sem esperança 
Que todo alui, à semelhança 
Dos castelos que ergueste no Ar?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Aspectos do ex-voto pictórico português




CARLOS NOGUEIRA
CENTRO DE TRADIÇÕES POPULARES PORTUGUESAS
“PROF. MANUEL VIEGAS GUERREIRO” / UNIVERSIDADE DE LISBOA

Resumo
O ex-voto, como objecto, que, colocado em ermidas, igrejas, capelas, etc., se oferece a Deus, à Virgem Maria  ou  a  um  santo,  em  cumprimento  de  um  voto  (do  latim  ex  voto,  “segundo promessa”), tem, em Portugal, uma das expressões mais quantiosas e ricas nas tábuas, painéis, quadros ou retábulos votivos, a que se atribui ainda a designação de “milagres” (por empréstimo sinedóquico da fórmula de abertura de grande parte destes artefactos, a qual, de resto, de todas aquela que certamente não é apenas do uso de especialistas, reenvia imediatamente para a práxis religiosa que se celebra e para o conteúdo diegético humano-religioso que ali se concentra). As narrativas pictóricas neles plasmadas, alusivas, na sua maioria, a moribundos e a naufrágios, a par  das inscrições  que  os  acompanham  e  prolongam,  consubstanciam  uma fenomenologia  do corpo  e  da  alma  que  importa  conhecer,  para  o  que  é  necessário  convocar conhecimentos interdisciplinares  (da  semiologia,  da  estética,  da  literatura,  da  linguística,  da  etnologia, da sociologia, da religião...).

DAQUI

Oração ao deitar - Serra da Estrela


«Com Deus me deito
Com Deus me levanto
Com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo.
Com três anjos aos pés
e quatro à cabeceira,
e Nossa Senhora na dianteira.
Se eu dormir embalai-me
Se eu morrer, acompanhai-me»


in: Pinharanda Gomes, "Piedade Eclesial, Piedade Popular", Separata de LAIKOS, Lisboa, 1980

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Raúl Brandão - Memórias (vol.III)


HÁ QUE TEMPOS!... 

Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado... Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão: viu cair por terra todos os seus sonhos – e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo! A realidade temerosa afastou-a sempre de si. Venceu-a. Deu-nos vida a todos. Alimentou-nos do mesmo sonho que a devorou até final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Foi dela que herdei a sensibilidade e o amor pelas árvores, pela água, e dela herdei também  o sonho... Bastava  que  a  bica  do  quintal-  deitasse  menos  para  minha  mãe adoecer.  Ficava  horas  a olhar,  extasiada,  o  pouco  de  musgo  humedecido,  donde escorria, vindo da escuridão, com um hálito de frescura, o fio azul infatigável, que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas líquidas que logo subiam à superfície reluzindo em  bolhas  iluminadas.  Às  vezes  íamos  vê-la  brotar  no  fundo  da  mina,  e  ansiosos e calados assistíamos na escuridão ao nascer misterioso da água borbulhando na madre e escorrendo logo pela caleira de pedra. Quando mais tarde minei o monte, fi-lo com a mesma ansiedade. Ver na terra sequiosa e inútil escorrerem as primeiras gotas que lhe dão vida e a transformam é um dos espectáculos mais lindos que conheço. É criar.

De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo, desde o jorro de Inverno que transborda ao fio de Setembro, deitado com aflição. Em Agosto secam os montes, em Setembro secam as fontes.

– Se secasse!...

De  noite  punha  o  ouvido  à  escuta  –  como  me  acontece  ainda  hoje  a  mim.  No silêncio profundo aquela voz é extraordinária de frescura e pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira – nem a das folhas, nem a do vento –, nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tomàs vezes, e por momentos, emudece. Secou! E lá torna a correr...

Plantou árvores até aos últimos dias – como eu as planto. E, já prostrada, mantinha de  pé  a  ilusão.  e teimava  em  sonhar – como  eu sonho até ao fim da  vida. Foi tal o frenesi,  o  encanto,  as  lágrimas, que  ainda  hoje  vivo  da  vida  de  minha  mãe.  Às  vezes sonhávamos juntos. Sentava-me ao pé dela e era capaz de estar assim horas perdidas. Ou,  tendo  corrido  pelo  quintal  numa  exaltação,  ia  direito  ao alegrete  e  desatava  aos soluços com a cabeça no seu colo. Ela não me dizia palavra nem me estranhava sequer – talvez  porque  visse  em  mim  reproduzida  a  mesma  sensibilidade  exagerada;  só  me passava  a  mão  na  cabeça,  e  àquele  contacto  ia  serenando  e  chorando  cada  vez  mais baixinho...  A  lua aparecia  atrás  dos  montes,  sobre  a  mais  bela  paisagem  do  Mundo porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.

Há imagens tão delicadas no fundo do meu ser, que tenho medo que desapareçam tocando-lhes. Apagaram-se  pouco  e  pouco.  Melhor:  transformaram-se  pouco  e  pouco, mais desvanecidas e  mais lindas, num fundo de auréola como certas figuras dos livros. Sinto-a doirada. Pura e doirada. Toda a matéria desapareceu, reduzida a fios de aranha. Ficou uma luz – sentimento que liga as suas raízes às minhas raízes.É quase nada e faz parte da essência da minha alma.

O meu sonho está preso por um fio ténue e indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Só uma única coisa se me conservou intacta na memória – o seu olhar. Talvez porque o amor nunca mais se apaga – talvez porque a luz seja a única realidade do mundo – o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade e o mesmo amor.

Foi ela quem me falou pela primeira vez naquele pobre que costuma entrar pela porta  dos  desgraçados dentro,  quando  menos  se  espera,  e  se  senta  ao  pé  do  lume:  – Assim andava o Senhor pelo mundo!... –E eu fugia para o fundo do quintal, para sonhar com Ele. Nunca mais deixei de amar a solidão nem de ver esse pobre extraordinário que me tem acompanhado até à velhice.

Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente – e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, que lá está todas as noites sentada ao pé da bica. Não  a  separo  desse  fio,  que  a lua  toca  por  momentos  com  o  seu  dedo  molhado  de branco – e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto aos que sabem amar...

A  Mari’Emília  foi,  até  morrer,  nossa  criada.  Era  um  tipo  popular,  de  energia admirável.  Estou  a vê-la  de  bigode  branco,  olhos  espertos  dum  azul  já  um  pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz Velha. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar. Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é que  era a  expressão  mais  intima  e  mais  bela  da  sua  alma:  a  alegria  na  desgraça. Infatigável e risonha – o riso sempre pronto no trabalho e na dor. Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente, depois de nos servir a vida inteira. A Mari’Enlília era já uma pessoa da família. Raro saía.. As mulheres do seu tempo estavam habituadas à reclusão e só saíam para a missa de capote e coca. A bem dizer-se, a  vida conventual estendia-se  até  cá  fora:  em  todos  os  quartos  de  dormir  havia  um oratório, de castanho ou pau-santo onde dia e noite ardia a lamparina. O da Mari’Emília era tão lindo como a sua alma: o Jesus crucificado sobressaia do fundo de papel azul com estrelinhas doiradas, entre o Bom e o Mau Ladrão. Também lá se via, um pouco a frente,  o  Menino  pela  mão  de  Maria  e  de  José  –  e,  muito  maior,  outro personagem principal,  entre  duas  velas  de  cera,  Santo  António,  o  santo  da  sua  devoção,  que  lhe servia de medianeiro quando queria obter os favores celestiais. Do quarto ao lado, onde eu dormia, ouvia-a todas as noites rezar. Ouvia-a com espanto. Era um diálogo cheio de familiaridade com Santo António – era uma coisa pueril que fazia chegar as lágrimas aos olhos. Ela não só lhe pedia – ralhava com ele como ralhava comigo, com autoridade e ternura.

–  Tu  ouves?...  –  Silêncio.  –  Tu  ouves?...  Tu  não  me  queres  ouvir!...–  Outro silêncio (naturalmente ele respondia-lhe). – Então eu peço e tu não me ouves?! Tinha-te prometido umas velas de arrátel, mas já não te dou, meu maroto, senão umas de quarta!

E aquilo seguia, durante muito tempo, no mesmo tom, com exclamações e rogos, até eu adormecer...Ao fim de tantos anos de familiaridade, tinham chegado a tratar-se como velhos amigos.

Nos  últimos  anos,  a  Mari’Emília  já  não  podia  trabalhar,  mas  fazia,  de  manhã  à noite,  as  meias de fio  branco  que  meu  pai  usou  até  à  morte  –  contando-nos  histórias intermináveis. Aprendi com a Mari’Emília coisas extraordinárias – a religião, no que ela tem de mais vivo – o veio que passa escondido de alma para alma do povo e a piedade pelos  humildes.  Vi  Jesus.  Vi  Jesus  menino,  a  quem  não  é preciso mudar  de  túnica porque  a  túnica  cresce  naturalmente  com  Ele;  vi-O  fazendo  pássaros  de barro  e soprando-lhes para eles voarem. Vi-O, depois, à porta do rico soberbo que O repele – vi-O sobretudo aparecer  nas  horas  em  que  se  sofre  e  se  espera.  Esta  religião  viva  e escondida,  esta ânsia  do pobre  –  esta  aspiração  que  não  morre  para  uma  vida  mais perfeita  e  mais  bela, transmitiu-me  uma criada  velha  e  humilde  –  que  tenho  sempre diante de mim mancle-mancle, a sorrir- -me com os olhos azuis já turvos pelos anos. E com ela quero viver e morrer.

Que  é  que  nós  lhe  demos para  assim  nos  amar?  Sofrimento,  trabalho  até  cair exausta de dedicação. E ela deu-nos à vida a alegria. Mancou e riu até ao fim. Nenhuma desgraça  pôde  com ela.Resistiu  sempre.  Serviu  e  amou.  E  no  fim  morreu  ainda servindo-nos e com estas palavras na boca:                           – Levo-vos no coração!

veio daqui
obrigada, Luis Manuel Gaspar, por Raúl Brandão

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Sereias no cancioneiro popular


A crença nas Sereias é ainda viva. Elas são raparigas da cinta para cima e peixes da cinta para baixo. Cantam muito bem e enganam os navios (Minho, Beira Alta, Trás-os-Montes, Galiza).

São vulgares estes versos, fragmentos de um romance popular, mas que se dizem como cantiga:

Ouvi cantá-la Sereia
Lá no meio desse mar:
Muito navio se perde
Aos som daquele cantar.

Lá no meio desse mar,
Ouvi cantar, escutei:
Saiu-me a Senhora Sereia
Lá no palácio d'el-rei

Esta noite, à meia-noite,
Ouvi um lindo cantar: 
Eram os anjos no céu
Ou as sereia no mar.

Na Galiza dizem:


A Sereia no mar,
É unha linda bizarra,
Quer por unha maldicion,
Tén-na Dios nesa auga.

Valla-me Dios! como canta
A Sereia no mar...
Os navios déron volta
Para y-a ouvir cantar. 

Nos Açores ainda existe a crença nas Fadas marinhas, ou sereias, que vêm pentear-se à praia. Num romance da ilha de São Jorge (Cantos pop. do Arquipélago Açoriano, por T. Braga, n.¨ 28 e 32 ) diz-se:

Escutai se q'reis ouvir
Um rico, doce cantar!
Devem ser as Marinhas
Ou os peixinhos do mar.

Que vozes do céo são estas,
que eu aqui ouço cantar?
Ou são anjos no céo
Ou as Sereias no mar.

IN: José Leite de Vasconcelos, Tradições populares de Portugal, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984 p.119

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Mário Botas


"Águas correntes de regatos imensos, que não estão no corpo mas na alma e desaguam sempre noutro rio até chegarem àquele a quem os Antigos chamavam Letes..."
Mário Botas



Auto-retrato

[Vários autores clássicos apontam o rio Lima, no Minho, como um rio que produzia o esquecimento.]

Santa Agata




Imagem de Santa Agata, Azambuja

Virgem e mártir, nasceu na Sicília. Segundo uma lenda foi entregue a uma prostituta e foram-lhe cortados os seios; mas S. Pedro curou-a desta mutilação. O seu culto estendeu-se à Igreja universal e o seu nome é lembrado na I Oração Eucarística (Cânone Romano). Várias vezes libertou a sua cidade natal das erupções do temível vulcão Etna. É a protectora das lactentes (humanos e animais), dos fundidores e dos ourives. É figurada com um vaso numa mão, cheia de seios cortados, e na outra com uma faca ou um par de tenazes. A sua festa é a 5 de Fevereiro. Portugal tem uma cidade com o seu nome. [...]

Aqui
Imagem daqui 



 

ALVES REDOL - [São Brás - Nazaré]


São Brás é um santo pobre. Tão pobre que os pescadores do carapau o consideram seu camarada e o único capaz de os ouvir, embora lá no alto, no monte de São Bartolomeu, que é um mamilo despropositado e quase esquecido no meio do pinhal, quando as outras montanhas figuram para longe. Mas o Santo se não os ouve, vê-os com certeza a arrastarem-se na praia, a medirem-se com o mar nas entradas e saídas, a deitarem-se na areia, abatidos, quase sem ganas de erguer um braço, tão agreste lhes vai a vida nestes tempos ruins. E apieda-se deles, dando-lhes resignação, que é a única coisa que um santo pode oferecer do céu.
[...]
Depois do almoço começam os grupos a derramar-se pela estrada além, apinocados os homens nas camisas coloridas de escocês e as raparigas nos aventais de seda bordados com flores, nas saias rodadas e bem curtas, nos cachinés de ramagens e nas blusas de padrões caprichosos, muitas delas com capas pretas pelos ombros, não porque o tempo esteja incerto, mas por lhes ficarem bem. Como manda a tradição, aparecem os primeiros mascarados a assinalar o começo do Carnaval, pois é preciso folgar quem passa vida tormentosa naquele mar de cruzes, que não perdoa a são nem a doente.

Mascaram-se as costureiras de mulheres da Praia, vestem-se estas com fatos de homens, e os homens de matrafonas, seios grossos de trapos, ancas largas com almofadas, em caricaturas de senhoras que já se não usam, de chapéus floridos e peles ratadas a cingirem-lhes os ombros.

Enfiam todos pelo pinhal, onde se fazem fogueiras pequenas para assar a chouriça do costume, bem regada com vinho que os homens levam nos garrafões pequenos e nas cabaças, pinga dum lado, pinga do outro, e a meio da tarde já tudo dança. Dançam em grandes rodas ao som de pequenas charangas, em rodopios de estarrecer, cá em baixo e no planalto do meio da encosta, onde vendilhões oferecem fiadas de pêros secos, bolos de açúcar e canela, pinhões enfiados ou em medidas. É aqui que os mascarados bailam, num primeiro arremedo de grupos carnavalescos. Rapam de pandeiretas e rodopiam, põem as fiadas de pêros à volta do pescoço, e petiscam e cantam, e petiscam e bailam, enquanto os mais devotos lá amarinham por aquele caminho de cabras, num escadório de madeira apoiada nas rochas velhas e com a ajuda de um corrimão de ferro já velho também.

Alves Redol, 'O Lago das Viúvas', romance inédito, 'A Nazaré na Obra de Alves Redol', SEC/Museu Etnográfico e Arqueológico Dr. Joaquim Manso, 1980

[ aportou aqui via Luis Manuel Gaspar, obrigada ]

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Romaria de São Brás - Monte de São Brás - Nazaré




fotografia de fotografia de Jorge Barros


fotografia de fotografia de Jorge Barros


fotografia de fotografia de Jorge Barros



fotografia de Jorge Barros


fotografia de Jorge Barros


in: Barros, Jorge e Soledade Martinho Costa (2002), Festas e Tradições Populares: Fevereiro. Lisboa: Círculo de Leitores.

Romaria de São Brás - Santa Cruz do Bispo - Matosinhos


O HOMEM DA MAÇA



fotografia de Jorge Barros

A estátua do «Homem da Maça» - que se encontra junto à Capela de São Brás - à qual as raparigas se abraçam para que lhes seja concedido um marido. Caso o desejo não se concretize «dá-se um banho de vinho» à escultura granítica. Era hábito também engrinaldarem-lhe o pescoço com flores.

Quadra cantada pelas raparigas ao «Homem da Maça» na romaria de São Brás:

Meu rico São Brás da Maça,
A vós me vou abraçar,
Arranjai-me um namorado,
Solteira, quero casar


São Brás - fotografia e Jorge Barros

 in: Barros, Jorge e Soledade Martinho Costa (2002), Festas e Tradições Populares: Fevereiro. Lisboa: Círculo de Leitores. 


A Fevereiro e ao rapaz perdoa tudo quanto faz,  
se Fevereiro não for secalhão e o rapaz não for ladrão

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013






"Para acompanhar as tuas mãos, vi este poema da Adília..."

"Eu quero
um par de luvas
de que cor não sei
para desvestir as mãos
não pense que é para esconder as mãos
não quero desvestir as mãos
não tenho medo das impressões digitais
é para desvestir as mãos
é isso mesmo só isso
não vale a pena abrir os dedos das luvas
dedo a dedo
com a espátula de madeira
não vale a pena deitar pó
de talco dentro dos dedos
essas luvas servem
para desvestir as mãos?
deixe-me ver a sua mão
I
como tem a mão
como é que fez isso?
podia responder-lhe assim
Me gusta ver la sangre!"

in O Decote da Dama de Espadas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.



obrigada Daniel  

sábado, 29 de dezembro de 2012

Sophia de Mello Breyner Andresen




                  MEDEIA


                         (adaptado de Ovídio)



Três vezes roda, três vezes inunda
Na água da fonte os seus cabelos leves,
Três vezes grita, três vezes se curva
E diz: «Noite fiel aos meus segredos,
Lua e astros que após o dia claro
Iluminais a sombra silenciosa,
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos,
Deuses dos bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa força, pois
Ajudada por vós posso fazer
Que os rios entre as margens espantadas
Voltem correndo até às suas fontes.
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou enchê-los de espuma e fundas ondas,
Posso chamar a mim os ventos, posso
Largá-los cavalgando nos espaços.
As palavras que digo e cada gesto
Que em redor do seu som no ar disponho
Torcem longínquas árvores e os homens
Despedaçam-se e morrem no seu eco.
Posso encher de tormento os animais,
Fazer que a terra cante, que as montanhas
Tremam e que floresçam os penedos.»


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

"fusinus albacarinoides"




                                                                                                        [para a minina Inês, que faz hoje 1 ano]

a menina do mar








[para a minina Inês, que faz hoje 1 ano]

[um anjo]


Uma criança disse: «Um anjo é uma gaivota.»
«Um anjo é um homem como os outros: o que é, tem asas.»
E outras: «Um anjo é um pássaro cantador.»
«Um anjo é uma andorinha. Tem uma coroa.»
«Um anjo é um homem que tem o sol pendurado atrás da cabeça.»
E uma outra sonhou que tinha engolido o sol.

Herberto Helder, «As Maneiras»/VI (fragmento), Retrato em Movimento, Lisboa, Ulisseia, 1967


[obrigada, Luis Manuel Gaspar]

sábado, 2 de junho de 2012

A Fonte da Moura de S. Julião

    Na aldeia de S. Julião, concelho de Bragança, havia uma fonte conhecida como a “Fonte da Moura” e também lhe chamavam “Fonte de Cima da Trembla”, pois situava-se no cimo de uma lameira com esse nome.
    Dizem as pessoas de idade que à meia-noite era costume ouvir-se ali tecer um tear. E que numa madrugada de S. João, uma mulher foi à fonte e entrou-lhe a ponta de um cordão para o cântaro. Ela pegou nele e começou a dobar até fazer um novelo grande, tão grande que já não lhe cabia nas mãos. E como só com muita dificuldade conseguia dobar mais, resolveu partir o cordão.
    Nesse mesmo instante o novelo desapareceu-lhe das mãos, e ouviu uma voz que disse:
    — Marota, que me encantaste para toda a minha vida!
    E o tear então nunca mais se ouviu. Dizem que a voz era de uma moura encantada. Se a mulher não tem partido o cordão, a moura teria aparecido na figura de serpente e não fazia mal a ninguém. Bastaria que a mulher lhe tivesse deitado um pouco de saliva na cabeça para ela ficar desencantada e em figura de uma jovem muito bonita.
    E traria com ela toda a sua riqueza.


Fonte: PARAFITA, Alexandre A Mitologia dos Mouros: Lendas, Mitos, Serpentes, Tesouros Vila Nova de Gaia, Gailivro, 2006 , p.217-218

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"onde há redes há rendas" II

A renda de bilros é uma indústria da beira-mar, destas mulheres loiras, de olhos azuis e rosto comprido – as da Foz, as de Leça e as de Vila do Conde – que passavam a vida à espera dos homens, enquanto as mãos ágeis iam tecendo ternura e espuma do mar...

Raul Brandão, Os Pescadores








 [fotografias retiradas da Internet; autor desconhecido]